“Senhora”, de José de Alencar

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras

Comumente se atribui à estética do Romantismo a tentativa de idealizar a realidade e de plasmá-la segundo os desígnios das emoções. Sob essa perspectiva, o sentimentalismo e a centralidade do “eu” eram os recursos com os quais os artistas representavam o mundo e, por isso, viabilizavam aos leitores uma cosmovisão calcada na subjetividade e, como lembra Antonio Candido, na busca “do único no lugar do perene” contra os universalismos de inspiração greco-romana. Prova disso está, conforme o crítico, no surgimento à época de “uma nova era de experimentalismo” que modificou a “fisionomia do discurso” e procurou “forjar a expressão para cada caso, cada nova necessidade”.

Acontece, porém, que a literatura, como as demais formas artísticas, não se furta à denúncia do real mesmo quando lança mão da atmosfera idealizada em suas fabulações. A análise acurada de certas relações sociais ou personalidades, ainda que velada e sutil, é parte intrínseca do produto literário e o fundamento da crítica que produz. No romance “Senhora” (1875), por exemplo, do profícuo escritor cearense José Martiniano de Alencar (1829-1877), um dos cânones da prosa romântica brasileira e símbolo das letras nacionais, essa denúncia, já com indícios do porvir realista, expõe com objetividade o esgarçamento da nossa sociedade a partir de uma psicologia feminina divergente e de um drama amoroso ao sabor das produções do século XIX.

A personagem central dessa obra de Alencar, a elegante e jovem Aurélia Camargo, a nova estrela do “céu fluminense”, a “rainha dos salões” recém-ascendida socialmente, “rica e formosa”, é a antípoda de suas contemporâneas porque subverte o padrão de seu tempo: de acordo com o próprio narrador, “operava-se nela uma revolução”, visto que “o princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro”. Ela é, no entendimento de Antonio Dimas, o avesso do estereótipo da dama frágil e “submissa ao mando do macho”. Não à toa, em conversa com dona Firmina, diz ter “um estilo de ouro” a cuja “eloquência arrebatadora não se resiste”.

Considerando a temática, “Senhora” descola-se de uma filiação literária meramente idealista para denunciar abertamente alguns tabus sociais, como a obsessão pela riqueza, o casamento por conveniência, as interações humanas interesseiras e o desmerecimento da atuação feminina no seio coletivo. O ponto de distensão dessas questões é justamente a emancipação moral de Aurélia, cujo vigor anímico confronta quaisquer opressões patriarcais já preestabelecidas. Apesar de possuir um tutor, ela “não declinava do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse”.
Por outro lado, cabe à escrita, às transformações redentoras de fatos e de pessoas e ao epílogo narrativo o teor romântico que tanto se espraia no ideário desse período histórico. Como sublinha João Luiz Lafetá, a recorrência das metáforas insiste em criar “um mundo de sonho em que a beleza e a fortuna triunfam sobre tudo”, afinal a protagonista é a “flor em vaso de alabastro”, é o “raio de sol no prisma do diamante”. O próprio Alencar, no capítulo inicial intitulado “Ao leitor”, reconhece que à história conferiu “exuberâncias de linguagem e afoitezas de imaginação” a fim de dar relevo às cenas e de colorir caprichosamente o heroísmo e a altivez da moça “ídolo dos noivos”.

O enredo do romance remonta, a seu tempo, a trajetória do casal Aurélia Camargo e Fernando Seixas. Para além da descrição inicial já mencionada, Aurélia é apresentada como uma adolescente órfã que herdou uma fortuna do avô paterno e começou a aparecer na sociedade do Rio de Janeiro acompanhada de uma velha parenta, d. Firmina Mascarenhas. Possuía verdadeira revolta à riqueza “que lhe servia de trono” e sem a qual dificilmente receberia tantos cortejos e tantas bajulações. Por esse motivo, era convicta de que “o dinheiro faz do feio bonito, e dá tudo, até saúde”, com o agravante de que o “vil ouro” só ajuda a rebaixar tiranicamente os indivíduos.

O progresso dessa trama é estruturado em quatro partes distintas, cada qual responsável por um elo específico no “reajustamento pessoal” entre as personagens, conforme expressão de Antonio Dimas, para quem “Senhora”, nesse sentido, “é vestibular para o romance de acento psicológico”. A meta, para o autor, é a intimidade dos agentes da ação que, voltados para si, tentam expurgar as convenções que lhes causam amargura.

Na primeira parte, chamada “O preço”, o texto apresenta Aurélia, sua abastança e o seu plano de vingança contra o futuro marido Seixas que, no passado, depois de pedir a mão da jovem, rejeitou-a para aproveitar o dote de Adelaide Amaral, uma moça rica. Na segunda parte, denominada “Quitação”, as ações concentram-se no retrospecto da pobreza de Aurélia, na vida trágica da sua família, na origem da fortuna herdada e na maneira como um amor preterido e não correspondido motivou a punição do atual cônjuge. Na terceira parte, a “Posse”, o foco é a vida socialmente dissimulada do casal em consonância com o distanciamento conjugal mutuamente pactuado. Na quarta parte, o “Resgate”, Seixas readquire a sua liberdade com a devolução da quantia a ele paga no contrato matrimonial.

Como tudo é desenvolvido em onisciência narrativa, o ficcionista, segundo Massaud Moisés, não esconde que conhece as coisas que se manifestam somente na alma, como se enxergasse o “eu profundo” estampado no “eu social”. Na prática, esse ponto de vista é meio eficiente para deslindar os comportamentos dos protagonistas e as impressões que lhes povoavam o espírito, a exemplo da descrição do estado de Fernando após as núpcias frustradas, quando se revelou todo o torpor e a insânia causados pela humilhante tutela a que ele se submetera. Esse aspecto formal favorece perceber, inclusive, o papel que o pretendente de Aurélia Camargo ocupa no contexto.

Fernando Seixas, homem de “fisionomia nobre” e sedutora, de “tez finíssima” e de “olhos rasgados e luminosos”, morava em casa humilde com a mãe e as duas irmãs, no entanto frequentava os bailes da corte fazendo-se moço distinto, já que ambicionava uma posição superior na sociedade. Era um daqueles homens que, “à força de viverem em um mundo de convenção”, tornam-se “artificiais”, porque a natureza não lhes era mais “a verdadeira, mas essa fictícia”, a do hábito falso e ilusionista. Até mesmo na condição de literato e jornalista, seus escritos não provinham da graça das emoções, mas da imitação de uma realidade emprestada de outrem. Em suma, tamanha debilidade de caráter lhe valeu a degradante alcunha de “homem vendido” elaborada por Aurélia, uma vez que ele aceitou se casar por meio de um acordo contratual às cegas no valor de cem contos de réis.

Esse modo de agir de Seixas elucida ainda mais a crítica taxativa ao casamento por conveniência, ou o “nome com que se decora o mercado matrimonial”, à medida que torna o dinheiro certo vilão das relações humanas. Trata-se do amor que “se compra e vende por uma transação mercantil” e que faz sombra à verdadeira bem-aventurança de um sentimento puro e desinteressado. Por essa razão, “Senhora” revela um outro Alencar diferente daquele indianista dos bons rapazes e das mocinhas passivas. Aqui é possível ver, consoante a observação de João Luiz Lafetá, um escritor “explorador habilidoso dos conflitos” e das desarmonias geradas “pelos desvios do equilíbrio supostamente natural”.

Vale ressaltar que esse romance, embora pincelado por um incipiente Realismo, aos poucos se acomoda nos trilhos da idealização, afinal, para além da linguagem metafórica característica do autor, o desenrolar da intriga possibilita que Fernando Seixas disponha da chance de purgar as suas faltas e de, a duras penas, mudar a sua conduta ao passo que Aurélia continua a ser forte e a crer no “amor santificado” e em alguém digno de vivê-lo. Tornar-se novo homem temperado pelo emblema virtuoso do heroísmo romântico pressupõe, no caso de “Senhora”, enfrentar larga provação. A ideia parece evocar as palavras de Pe. António Vieira no Sermão do 4º Domingo da Ascensão: “Diante da imagem dos meus pecados é que eu me apequeno por ver o preço pelo qual eu me vendi”.

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