Milton Cardoso
Especial para o Correio
No longínquo ano de 1920, um ligeiro e despretensioso espetáculo revisteiro Itapetiningano tornou-se um sucesso de público na cidade. “É Inacreditive!”, escrito pelo estreante dramaturgo Dimas de Lima, foi apresentado no Cinema Ideal, fazendo uma crônica alegre dos hábitos e costumes de uma cidade com cerca de sete mil habitantes, para a diversão do seu público.
“É Inacreditive!” foi possivelmente uma das primeiras revistas de costumes sobre Itapetininga. A peça possuía números musicais e uma apoteose ao final, dedicada a Peixoto Gomide. Concebida para impressionar, essa apoteose era um quadro criado por cenógrafos e maquinistas a partir de uma indicação do autor. Infelizmente, a edição publicada não faz qualquer indicação desse momento especial.
Esse gênero teatral, popular no país no final do século 19 e metade do século passado, mostrava um autor antenado às contribuições brasileiras que cativavam as plateias, como a utilização de apenas dois atos na encenação em clara ruptura com o modelo francês de três atos, em voga até então.
Como um espetáculo teatral desaparece imediatamente no passado quando suas cortinas se fecham, felizmente a publicação do texto de Dimas nos permite conhecer um período Itapetiningano perdido no tempo. Em suas páginas, registra-se um humor irreverente sobre a moda, a energia elétrica e outros temas. Obviamente boa parte do significado dessa comicidade se perdeu no decorrer de mais de cem anos, mas continua um indispensável registro para imaginarmos uma Itapetininga num período áureo.
Na cena final, o sertanejo Mutt (Abílio Soares) devolve um livro de latim a uma estudante que o tinha deixado cair. Ao devolvê-lo, o curioso personagem indica as escolas e pergunta se o “tal” Peixoto Gomide seria o dono do casarão. “Não, meu senhor, puro engano. A ele devemos este mimo, este grandioso santuário que nos ensina o caminho do progresso, do bem e da vida!”, responde com entusiasmo a aluna antes da referida apoteose.
Pode passar desapercebido ao leitor, mas os jornais dessa época referem-se a Nhô Bentico, na época com 21 anos, como Abílio Soares, seu nome de batismo. Abílio vinha construindo sua identidade artística que futuramente o consagraria. Na ausência de documentação, é impossível identificar à qual grupo dramático ele pertencia, de Coelho Netto ou de João Libânio, mas sabemos que já fazia muito sucesso com suas esquetes cômicas sertanejas, como num espetáculo beneficente de variedades no cine Pathé, em janeiro daquele ano.
Cinema – Na rígida sociedade da época, o cinema possibilitou novas perspectivas para os itapetininganos, sendo um dos responsáveis pelo aparecimento do “footing”. Com dois espaços cinematográficos, o Ideal e o Pathé, desde a década de 1910, estabeleceu-se a rotina de chegar antes do início da sessão. Um pretexto para moças e rapazes se encontrarem nos clubes ou arredores, irem ao cinema em passos vagarosos e “esticarem” o percurso por ruas e praças. Oracy Nogueira explica que o hábito do “footing” na cidade consolidou-se apenas na década de 1930.
As primeiras exibições na cidade datam de 1905. Pouco depois, os irmãos Samarco instalaram um pavilhão de tecido na praça Marechal Deodoro para a exibição de filmes. “Naquela festa que ponharam no largo um pano amarrado num pau e fizero aparecê uma fita”, cita Mutt (veja box nesta página) numa possível referência a essas primeiras exibições.
O primeiro edifício construído para a arte cinematográfica na cidade surge em 1910. O proprietário era o mesmo da Confeitaria Vadosinho, Salvador Brisolla Netto, que possuía sociedade com seus irmãos, Píndaro e Otávio. O Cinema Ideal surge na rua Monsenhor Soares, atendendo mais de seiscentas pessoas.
Popular, o cinema era frequentado por todas as classes sociais e por diversas faixas etárias. Em 1920, foi anunciado que o antigo barracão que abrigava o cine Pathé seria desmanchado e que, em seu lugar, seria construído um elegante cineteatro (São José) com 32 frisas, 600 poltronas e vasta galeria. O trabalho seria coordenado por Abrão Sacco.
Atrações – Até hoje os seriados são os preferidos do público brasileiro. Não à toa mais de 90% da nossa população gostam de assistir a séries, segundo recente pesquisa. Em 1920, no Pathé, faziam sucesso as séries “Diamante no Céu” e “Cavalgada Fantasma”. No Ideal, um dos grandes sucessos daquele ano foi o seriado de ação “The Lightning Raider” (“O Vampiro Relâmpago”, no Brasil), considerado o primeiro filme de Boris Karloff, que se popularizou posteriormente no papel de Frankenstein.
Os astros do cinema mudo, hoje esquecidos, mexiam com o imaginário da plateia, conforme demonstra o diálogo entre Mutt, o seu compadre (João Gatti) e a personificação do próprio Ideal como alegoria de si mesmo. Em um breve trecho, são citadas grandes estrelas que entretinham o público, como Dorothy Dalton, que protagonizou as películas “Chicken Casey”, “Back of the Man” e outras, William Farnum, um dos atores de Hollywood mais bem pagos daquela época, Pearl Withe, apelidada de “Rainha dos Seriados”, e o comediante Max Linder, que ficou famoso por suas comédias pastelão.
Se a magia dos filmes e dos seriados ganharam novas mídias no decorrer das décadas, infelizmente “a revista de costumes” praticamente desapareceu dos palcos brasileiros a partir de 1960.
Registros são fundamentais para entendermos o processo de construção de nossa história e de suas transformações. E a arte, por sua vez, nos alimenta para refletirmos sobre nossa existência, dilemas, dores, sabores e dissabores. Como nos finais dos filmes de Chaplin, a vida nos lança “numa estrada de pó e de esperança”, nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, e nos faz reaparecer em uma nova aventura, num futuro aguardado, mas nem sempre como o esperado.
TRECHO DA PEÇA
IDEAL (Barulho nos bastidores) Pronto, aqui estou; a minha casa é frequentada por todos; pobres, ricos, velhos, moças e crianças. Aos domingos, abro as minhas portas 3 vezes para dar entrada aos meus distintos frequentadores. (…)
IDEAL – Escutem lá. Tenho uma fila de frizas, um vasto salão que tem o nome de plateia e um segundo andar a que se dá os nomes de geral ou galinheiro.
MUTT – Ehá! É… inacreditive! Agora que me alembro, vance é o tá cinema ideá, propriedade de nhô Vadosinho e nhô Pindro, não é? (…)
IDEAL – Todas as fitas que passam em mim são das melhores fábricas e artistas mais afamados.
MUTT – Quano é que vão passá em vance a fita do Vilião Farno?
IDEAL – Há, a do William Farnum? (…)
MUTT – Eu tenho muita vontade de conhece a tá Perla Vite; porque tudo mundo fala nela.
IDEAL – Ah! Sim, a Pearl Withe? É uma artista de reputação. (…)
MUTT – Naquela festa que ponharam no largo um pano amarrado num pau e fizero aparecê uma fita que eu gostei muito do artista tchamado… amóque é… é… Matcho… Lindo.
IDEAL – Ora essa é boa, não é macho lindo, ele chama-se Max Linder. (…)
JEFF – Cumpadre Mutt, vance qué, nois vae assistí hoje no Idéa aquela fita do Jorge Valse que vae trabaiá djunto com a Doroty Dalton.
MUTT – Não diga coroné, la pro bairro a caipirada só fala do Jorge Valse e mais ainda da Juruty Danton! (…)
JEFF (Olhando o relógio) – Pros catchorro! Já tá na hora de cumeçá o cinema, e mió nois hi indo pra morde atchá lugà bem pertico do lançó que tá esticado lá na frente.
IDEAL – Excelente ideia!