Por: Daniel Paulo de Souza
O filósofo Immanuel Kant considera que as distintas sensações, “de contentamento ou de desgosto”, não repousam propriamente na qualidade dos objetos exteriores que, de certa forma, suscitam-nas, mas no sentimento produzido por elas. Daí decorre o fato de que diferentes homens, desejosos de comprazer alguma inclinação e, para tanto, submetidos aos mesmos estímulos, podem ter reações díspares que variam do deleite à repugnância.
Para Kant, no bojo das motivações que levam o sujeito a tentar satisfazer essas inclinações, há certa espécie de “sentimento refinado” que pressupõe “uma sensibilidade da alma” e que produz uma comoção agradável manifesta de maneiras bem diversas: o sentimento do “sublime” e do “belo”. Grosso modo, o sublime, naturalmente transcendental, “comove” enquanto o belo, visivelmente material, “estimula”. O primeiro permite que as impressões se revelem com intensidade, e o segundo com a necessária fruição. De acordo com o filósofo alemão, a noite, por sua seriedade e rigidez, é “sublime”; o dia, por sua resplandecência e jovialidade, é “belo”.
Pode-se dizer que a estética romântica cultivada na Europa ocidental nos séculos XVIII e XIX realizou a aplicação artística dessas noções kantianas, reconhecendo-as sobretudo na contemplação da beleza, nas sensações de assombro, de melancolia ou de mistério e até na idealização da figura do herói, cujo virtuosismo mantém estreita relação com o fomento de uma sensibilidade acurada. A crítica posteriormente empreendida contra essa valoração do belo e do sublime, por sua vez, apresentou uma realidade bem menos convidativa na qual o indivíduo, em virtude das experiências sociais malogradas, lutava contra os vícios e os maus pensamentos que o consumiam.
É justamente essa aura mais pessimista e mais colada ao real, oposta a todo idealismo romântico, que torna a novela “Memórias do subsolo” (1864), do excepcional escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), um drama interior de “tom demasiado estranho”, “brutal e desvairado”, nas palavras do próprio autor. Narrada em primeira pessoa, ela é, na verdade, um monólogo em que se lê, conforme aponta Boris Schnaiderman, toda a “introspecção verrumante” de um protagonista anônimo que diz ser um homem “doente”, “mau”, “desagradável”, “supersticioso”, um ex-funcionário público “grosseiro” que se aprazia em magoar alguém. Essa autoponderação da incorrigível negatividade de caráter é posta com tanta objetividade e energia que Nietzsche, ao ter contato com ela, afirmou que “a voz do sangue (como denominá-la de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limite”.
“Memórias do subsolo” é dividida em duas partes distintas. Na primeira, “O subsolo”, há, consoante a síntese de Rubens Figueiredo, “uma explanação polêmica e acusatória” sem a presença de um alvo delimitado, além da apresentação do personagem e de sua maneira peculiar de pensar. Na segunda, “A propósito da neve molhada”, o espaço mais longo do enredo, há efetivamente o relato das memórias que ajudam a compreender por que aquele homem se tornou o que é. A nota introdutória assinada por Dostoiévski alerta que o texto e seu autor são “imaginários”, todavia a pessoa ali retratada não só pode como deve “até existir em nossa sociedade”.
Schnaiderman comenta que, nessa abertura, particularmente nessa admissão da condição inventada do protagonista, verifica-se uma ruptura do padrão corrente da ficção quando se coloca em questão “o próprio estatuto da literatura em sua relação com o representado”. Após esse aviso inicial, ergue-se potente a voz do “homem do subsolo” com tal independência que, no seu desenvolvimento, é capaz de convencer inadvertidamente que a postura rancorosa por ele assumida, proveniente de um excesso de consciência e de uma inteligência acima da média, sobrepuja-se à suposta bondade e à estupidez dos “homens de ação”, ou os homens “direitos” e “normais”.
Tais especificidades narrativas integram um conjunto de características literárias que tornam Dostoiévski um clássico inextinguível. Mikhail Bakhtin, um de seus maiores intérpretes, afirma que “Dostoiévski é criador do romance polifônico”, pois em suas obras existe uma “multiplicidade de vozes e de consciências” que se colocam autônomas e plurivalentes na interação discursiva e que “se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade”. Essa análise leva à conclusão de que os personagens do escritor russo não são apenas objetos do discurso de outrem, mas também os “sujeitos desse discurso diretamente significante”.
Essa construção polifônica fica clara em “Memórias do subsolo” quando o homem, marcado por uma personalidade assertiva e contundente, aceita a falar sobre si e a escrever uma narrativa de reminiscências desde que toda ela fosse calcada no contraponto entre as suas convicções e uma voz indagadora interior cuja essência é a antinomia da sua. A todo instante ele dialoga com o vocativo “senhores” e a ele se dirige, em segunda pessoa, para justificar certas tomadas de posição. Mesmo depois de praticar maus gracejos, por exemplo, insiste em mantê-los e recusa-se a riscá-los, porquanto percebeu, com isso, que havia assumido “uma atitude arrogante e ignóbil”. Ele reconhece, em outro momento, ter mentido sobre ser maldoso, ter assegurado “não temer nada” e, todavia, buscado o aplauso do outro, porque não pode negar a sua índole paradoxalista e não pode arrepender-se de alguma ação.
O “homem do subsolo” se vê como alguém de consciência que não conseguiu tornar-se “sequer um inseto”. Tinha ciência “do bem e de tudo o que é ‘belo e sublime’, mas afundou-se no lodo de seus atos e pensamentos e nele imergia completamente, afinal, segundo ele próprio, “o homem está pronto para deturpar intencionalmente a verdade”, e os inteligentes têm por destinação a tagarelice. Ele atacou a racionalidade e o positivismo do conhecimento enquanto eles buscarem encerrar a vida na fórmula “dois e dois são quatro” impertinente e insuficiente para desvendar as variantes existenciais, e enquanto forem antitéticos “ao ato de querer” mais compatível com a fluidez dos desejos, ainda que ele, como observador de si, perpetre uma análise do mundo a partir de uma argumentação que lhe é contingente.
Bakhtin pondera que esse “homem do subsolo” necessita permanecer em oposição “ao outro”. Destaca que “a voz humana real, assim como a réplica antecipável do outro, não podem dar por acabado o seu interminável diálogo interior”, afinal toda a novela “se fez sobre uma confissão elaborada na expectativa da palavra do outro” e se configurou um apelo a alguém, a si mesmo, a outrem, ao mundo.
Depois de preferir “a inércia consciente”, de exaltar a irracionalidade do subsolo e de admitir não crer numa só palavra rabiscada na primeira parte, o narrador, autodenominado um anti-herói, relata consecutivos episódios que moldaram a sua concepção niilista da existência e confirmaram a propensão rebaixada de seu caráter. Em todos tentou levar a cabo a vingança que tanto condenou nos “homens normais”: não aceitou a indiferença do soldado e foi-lhe ao encalço para confrontá-lo; sentiu-se “coberto de escarros” quando os conhecidos de infância o desprezaram e tentou duelar até a morte com Zvierkóv após o “choque com a realidade” proporcionado pelo constrangimento do jantar; viu que não podia viver “sem autoridade e tirania sobre alguém” e fez de Liza a expiação de uma suposta humilhação moral por que passou.
Se o belo e o sublime não se apresentam nessa novela como índices de um sentimento propriamente refinado, pelo menos despertam uma sensação terrível por ocasião da cruel deturpação da alma que as más impressões acumuladas podem causar. Está certo Jorge Luís Borges ao dizer que a leitura de “Memórias do subsolo” o fez perder a inocência a respeito da vida. Mais certo ainda está William Faulkner ao comentar que Dostoiévski “é como o vaga-lume que ilumina muito pouco quando pisca, mas com a sua pequena luz podemos ver de quanta escuridão está cercado o ser humano”.