“A revolução dos bichos”, de George Orwell

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras

Depois de decorridos alguns anos de uma revolução aparentemente bem-sucedida, em que se presenciou, ao menos por um breve período, o triunfo da igualdade e da liberdade contra uma histórica tirania, certa parcela dos insurgentes já estava com uma memória assaz cambaleante. Naquele instante, “a vida ia dura”, estava “cheia de privações” e era regada à “fome” e ao “frio”, mas parecia ser melhor que antigamente. O novo poder, empossado pela mesma revolução, afirmava insistentemente que, comparada aos dias de opressão antes vividos, a existência presente era ainda muito superior, sobretudo porque havia livrado os rebeldes do jugo da escravidão.

Essa história, do início ao fim regada a comportamentos tipicamente humanos, é, na verdade, protagonizada por animais e, nesse sentido, representa uma das fábulas mais intrigantes da literatura moderna. A trama de “A revolução dos bichos” (1945), de George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-1950), reverbera a realidade com cores tão intensas que o leitor, atento às analogias e às alegorias, não pode furtar-se à densa crítica social proposta em todas as cenas e diálogos. O próprio autor escreveu posteriormente que o livro é uma tentativa consciente de “amalgamar os propósitos político e artístico”.

Embora rejeitada inicialmente por alguns editores, dentre eles o consagrado poeta T.S. Eliot, em virtude da aberta sátira à ditadura stalinista, a obra logo produziu grande impacto quando veio a público. Parte da recepção positiva que recebeu se deve à brevidade do texto, à linguagem direta e à proposta inusitada de denunciar um momento histórico marcante, a Revolução Russa. A tentativa de analisar o marxismo sob a ótica dos animais também tornou essa narrativa de Orwell uma distinta metáfora sobre as deficiências de caráter dos seres humanos. Nas palavras do velho Major, um porco que gozava de “alto conceito” na fazenda, “todos os hábitos do homem são maus”; ele “não busca interesses que não os dele próprio”.

Certas coincidências entre a realidade e a ficção, no entanto, não podem definir o alcance significativo de uma composição literária. Ainda que subjacentes e importantes, os elementos extrínsecos não determinam o percurso a ser adotado pelo analista nem o resultado atingido pelo tecer da intriga, já que a ordem interna que lhe é inerente cria o próprio mundo discursivo e imaginário. Sobre isso, o filósofo Theodor Adorno diz que “a referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela”. Não à toa, Morris Dickstein comenta que Orwell conseguiu inserir, em “A revolução dos bichos”, não só os fatos políticos, mas também “uma quantidade extraordinária de pontos de vista” para manifestar um olhar específico sobre as coisas.

O enredo, dividido em dez pequenos capítulos, começa com o velho Major desejando contar aos animais da “Fazenda do Solar”, propriedade do Sr. Jones, um sonho que tivera na véspera. Aos poucos, os bichos reuniram-se no celeiro para ouvi-lo, com destaque para o grupo de porcos, para Guerreiro e Tulipa, os cavalos de tração, para Mabel, a cabra, para Benjamin, o burro, e para Chica, a égua branca e vaidosa. Em seu discurso, Major reiterou que a longa experiência lhe mostrara que a vida do animal era particularmente “miserável, trabalhosa, curta” e escravizada. Diante da fertilidade do solo inglês, ele afirma, poderia haver conforto e dignidade a todos não fosse a figura do homem, o “único e verdadeiro inimigo” que “consome sem produzir”, cujo senhorio sobre a natureza é a causa da violência, da fome e da sobrecarga imputada aos demais.

Contra o despotismo humano, Major propôs a queda dos algozes por meio de uma rebelião movida a sólidos ideais que deveriam ressoar às futuras gerações. “Evitai os vícios”, ele exorta, e os que “andam sobre duas pernas”. Na concepção dele, todo ser “de quatro patas ou de asas é amigo” e não pode ser tiranizado, afinal “todos os animais são iguais”. Dessa forma, ao som da canção “Bichos da Inglaterra”, ele resume o sonho que o marcou: uma evocação à luta, à queda do homem e à predição do consequente domínio dos próprios bichos sobre as terras.

Três dias após o encontro, a morte de Major permitiu-lhe cumprir um certo papel messiânico: sua fala tornou-se não só um legado de incitação coletiva, mas também uma filosofia de vida aos moradores da fazenda. Os porcos, “os mais inteligentes” dos animais, especialmente três de suas figuras mais proeminentes, Bola de Neve, Napoleão e Guincho, organizaram os ensinamentos daquela noite num sistema ao qual deram o nome de “Animalismo” e o sintetizaram em “sete mandamentos”. Essa nova tábua da lei foi inscrita com letras brancas na parede da granja assim que uma insurreição finalmente depôs o Sr. Jones e a esposa.

Nesse ponto, a história de “Animal farm” mostra a “sua inequívoca advertência de como as relações de poder afetam o nosso destino”, de acordo com Jotabê Medeiros. Ao assumirem a governança da Fazenda, os porcos, “donos de um conhecimento maior”, começaram a praticar mentiras, favorecimento próprio e abuso velado de autoridade que escalou até a brutalidade. A partir da rotina do trabalho pesado, do hasteamento da bandeira improvisada, das assembleias gerais e da repetição da canção, os anteriormente oprimidos passaram a ser opressores e a afeiçoar-se aos costumes que tanto abominavam.

Para Michel Foucault, o poder não está localizado em pessoas ou em instituições; é, na prática, uma relação de forças, “funciona e se exerce em rede”. Ele precisa “ser analisado como algo que circula” e em cujas “malhas” os indivíduos trafegam como “centros de transmissão”. Na narrativa orwelliana, essa ideia fica clara justamente quando um processo de sujeição, o dos homens, abre caminho para algo semelhante, o dos animais. Segundo Foucault, o sujeito “não é o outro do poder”, mas “um de seus primeiros efeitos”.

Bola de Neve e Napoleão protagonizaram o comando da fazenda sempre com ásperas divergências entre si. No episódio do sumiço do leite e das maçãs, entretanto, ficaram do mesmo lado para defender o direito de os porcos consumirem mais comida em razão do esforço intelectual a que se prestavam. Tempos depois, Bola de Neve, apesar de ter liderado bravamente uma resistência contra o retorno do Sr. Jones, foi ferozmente expulso quando apresentou o projeto do moinho de vento e os argumentos que tornavam esse engenho essencial à autonomia dos bichos. Napoleão, o perverso, de posse de uma guarda de nove grandes cães, atribuiu ao antigo aliado a pecha de conspirador para, com isso, tentar matá-lo e aclamar-se soberano entre os animais.

A ânsia pelo poder trouxe também os sórdidos mecanismos para mantê-lo. Não demorou muito para haver na fazenda racionamento de comida, trabalho escravo, uma delicada e nova urdidura do passado, com a reformulação conveniente de fatos, extinção dos debates, falsas notícias de conspirações atreladas à presença espectral de Bola de Neve, assassinatos para conter o avanço dos que subvertiam os propósitos revolucionários, ou deles discordavam, e alianças com os homens, sr. Pilkington e sr. Frederick, os fazendeiros da vizinhança, para comercializar produtos. O maior dos ardis foi a adulteração sutil dos primitivos mandamentos refletida principalmente no último preceito: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.

Mesmo diante das atrocidades, ao lema “quatro pernas bom, duas pernas ruim” agregou-se a máxima de Guerreiro: “Se o Camarada Napoleão diz, deve estar certo”. De maneira desconcertante, a obra de Orwell fala, na mesma medida, de relações de poder e de adesão alienada às causas totalitárias que, nas palavras de Hannah Arendt, “necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis” a olhares isolados de qualquer outra fonte de informação. A cegueira crítica torna-se, assim, o facilitador do autoritarismo, de seus meios cruéis de governança e de sua manipulação em massa. Étienne de La Boétie mostra como é triste ver um povo, quando submetido, cair no esquecimento profundo do que é ser livre. “Serve tão bem e de bom grado”, ele diz, que “perde a liberdade” e “ganha a servidão”.

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