Por: Daniel Paulo de Souza
As narrativas modernas, como parte das características que as tornaram cativantes e celebradas pela crítica e pelo público, acostumaram os leitores aos mais variados elementos insólitos que perpassam o ser no mundo. À medida que colocaram em evidência as ambiguidades que norteiam a vida e que são ignoradas por causa do caráter enigmático com que se apresentam, elas revelaram, em cenas chocantes, incômodas e, às vezes, repugnantes, as inúmeras matizes que compõem a intrincada existência humana e seus desdobramentos psíquicos. Afinal, não faltam lacunas na definição da interioridade do homem.
Gregor Samsa, personagem central da novela “A Metamorfose”, de Franz Kafka (1883-1924), descobriu-se certa manhã imerso em uma dessas experiências insólitas: ao acordar de “sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. À primeira vista, na tentativa de compreender o seu estado, Gregor sentiu o seu corpo encouraçado, o ventre abaulado e repleto de nervuras, as numerosas pernas finas, sem, no entanto, saber exatamente o que havia acontecido. Após esse exame inicial, sobreveio uma constatação um tanto embaraçosa: ao ver o seu quarto, um “autêntico quarto humano” com todos os seus pertences no lugar, finalmente ele percebeu que aquilo “não era um sonho”. A transformação lhe era inescapável.
A sequência dessa história, para o leitor, é mais surpreendente do que a mutação em si, pois ela traz um Gregor resignado e, até certo ponto, anestesiado diante do que Tzvetan Todorov nomeou de “acontecimento inaudito”. Para além do aspecto grotesco de inseto, as suas preocupações passaram a ser, na verdade, as de ordem puramente prática: como se apresentaria ao trabalho com aquela aparência, como se explicaria ao gerente, como pagaria a dívida da família ou como ajudaria a irmã a seguir o desejo de estudar música. Conforme disse Albert Camus, referindo-se a Kafka, “nunca nos assombraremos o suficiente dessa falta de assombro”. Nesse sentido, a passividade do personagem diante do insólito parece ser reflexo da inércia com a qual enfrentava os problemas cotidianos.
Assim que percebeu a própria metamorfose, Gregor não lamentou mais a animalidade a que estava condenado. Ao contrário, começou a repassar na consciência a sua rotina, os afazeres, o horário avançado, as responsabilidades, as agruras e as insatisfações: “Que profissão cansativa eu escolhi”, dizia; “Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada”, continuava; “Já vou me levantar”, insistia ao ser interpelado pela mãe do lado de fora do quarto; “Não fique inutilmente aí na cama”, cobrava-se. Nada, entretanto, que remediasse o absurdo da noite anterior, apenas um lapso de razão que o exortava a restabelecer uma possível normalidade. A visita do gerente, a pressão dos pais e as súplicas da irmã, exigindo-lhe a apresentação imediata ao trabalho, contribuíram para que espontaneamente o sobrenatural se estabelecesse como ato legítimo e tornasse o mundo descrito já estranho ou, segundo Todorov, tão anormal quanto “o acontecimento ao qual serve de fundo”. É justamente nesse sentido que a novela de Kafka abre espaço a uma literatura denominada fantástica: por meio da suspensão das certezas preestabelecidas, uma nova realidade, factível a seu modo, erige-se diante do leitor que, por sua vez, garante a ela tangibilidade à medida que a julga verossímil.
Depois dessa experiência inicial caótica, Gregor Samsa foi demitido, porque o seu gerente não suportou vê-lo com aquele aspecto tenebroso. Como caixeiro-viajante e arrimo da família, cujo serviço ininterrupto lhe furtou praticamente a vida pessoal, não tinha a quem recorrer naquela altura. Passou a depender particularmente da irmã Grete, pois a mãe e o pai não tomavam coragem para olhá-lo. A própria Grete, aliás, era a única a alimentá-lo e a limpar-lhe o quarto, embora costumasse titubear ao entrar no cômodo, sempre o fazendo na ponta dos pés “como se fosse o quarto de um doente grave ou mesmo de um estranho”. Numa das raras saídas de Gregor do aposento, ele acabou assustando sem querer a mãe e, por isso, despertou a ira do pai, que o feriu severamente nas costas com uma maça. Daí em diante, não houve saída senão a debilidade paulatina.
Como destaca Modesto Carone, em Franz Kafka, brilhante e assertivo escritor tcheco do início do século XX, a linguagem carrega a “notação obsessiva e naturalista do detalhe” com “a tarefa de cercar a fantasmagoria, conferindo-lhe a credibilidade do real”. Dessa forma, o insólito aparece como uma presença incômoda mas exequível na memória, uma espécie de experiência latente que supera a inércia e o distanciamento do público e converte o homem “normal”, identificado com as suposições da narrativa, em ser fantástico. No caso da obra “A Metamorfose”, o duplo sentido da transformação tende a abrir caminho para um olhar atento aos sentimentos de dor e de resignação tão bem camuflados nas relações sociais supérfluas.
Segundo Deleuze e Guattari, esse estado de “vir a ser” um animal, ou o que chamaram de “devir-animal”, não é uma metáfora ou um simbolismo, mas um “mapa de intensidades”, uma saída provocada pela anulação progressiva do homem frente aos conflitos que o perseguem. Em outras palavras, a metamorfose não esconde circunstâncias, mas faz aclarar o que a própria vida de Gregor já transbordava: uma pessoa resignada com o trabalho, pessimista, submissa ao autoritarismo do patrão, solitária, explorada e cansada da profissão que foi obrigada a abraçar por causa da família. Nesse sentido, e para seguir o pensamento de Deleuze e Guattari, cabe ressaltar que o personagem, frente a essa dor do não pertencimento ao mundo, tem na mutação uma oportunidade de fugir dos problemas insolúveis e das desesperanças contínuas. Vivendo praticamente como um espectro escondido nas sombras, um “velho bicho sujo”, resta-lhe lamentar a sorte da família, ouvir as conversas sobre a falta de dinheiro e sentir-se impotente, mas resignado pela condição abjeta do “devir-animal”, condenado ao fracasso pela sua própria insuficiência.
O desnudar bruto da situação fatídica de Gregor Samsa revela não só esse caráter de resignação, associado a uma certa dor existencial, mas também o pessimismo como atitude precípua de ser no mundo. De acordo com Arthur Schopenhauer, “o sentimento mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento”, porque os obstáculos e as dores auxiliam a perceber direta e claramente o que não está em conformidade com a nossa vontade. Dessa forma, segundo o filósofo alemão, a dor é uma “necessidade essencial à vida” e o mal é algo positivo, “é aquilo que em si mesmo se torna sensível” visto que faz notar o insatisfatório oculto, ao contrário do bem que representa a supressão do desejo e a “eliminação de uma angústia”.
Sob essa perspectiva, o incômodo provocado por “A Metamorfose” vai além da transmutação do homem em inseto. Numa orientação particular de análise, pode-se entender que a obra não pretende ser, pela descrição precisa e realística, o mero despertar de uma repugnância escatológica, mas uma peça de insatisfação ao comodismo, à indiferença e à insensibilidawde. Ademais, pautar a ideia da negatividade da felicidade e da importância da dor mostra o compromisso com a transformação efetiva do homem, e não com o deleite vazio do público. Isso, sem dúvida, torna Kafka um moderno por excelência.