“Macbeth”, de William Shakespeare

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras:

Na visão do crítico norte-americano Harold Bloom, antes do poeta e dramaturgo William Shakespeare (1564-1616), os personagens literários “são relativamente imutáveis” no sentido de que não se desenvolvem “a partir de suas alterações interiores”, mas em função de “seu relacionamento com os deuses”. Depois do famigerado bardo inglês, os personagens passam a ter profundidade psicológica diferenciada à medida que conseguem, às vezes dialogando consigo ou com outrem, se “autorrecriarem” e, por consequência, se constituírem em um espaço de individuação que possibilita vozes distintas e “internamente coerentes”.
Para Bloom, a personalidade, entendida como uma nova forma de consciência, é “uma invenção shakespeariana”, a razão maior da perenidade do autor. Segundo o crítico, “ao valorizarmos ou desprezarmos nossas próprias personalidades”, somos herdeiros daqueles caracteres que compõem o teatro de Shakespeare em suas múltiplas e variadas matizes espirituais, cuja transcendência altera a nossa percepção da vida. Dessa forma, ao admirar Hamlet, Otelo, Iago, Rosalinda, Macbeth, Lear, Falstaff e outras criações desse profícuo dramaturgo, o leitor termina encontrando respostas para desvendar a si mesmo.
Comumente reputada como uma das maiores tragédias de Shakespeare, “Macbeth” traz à baila, numa ambientação enigmática e sombria, esses elementos anímicos de forma intensa e gradualmente violenta. Reconhecida como a peça mais sangrenta do autor inglês, ela começa de maneira inusitada, com a presença de três bruxas que se preparam para encontrar o personagem-título e predizer-lhe um vaticínio perturbador e, ao mesmo tempo, tentador. Antes, ainda na primeira cena em que dialogam entre si, sob relâmpagos e trovões, as estranhas irmãs (“Weird Sisters”) relativizam importantes princípios humanos ao dizerem que “o Bem, o Mal / – É tudo igual”, máxima antitética que possibilita uma espécie de justificativa moral para a adoção de qualquer conduta que sirva aos fins a que se aspira.
Guiado por força sobrenatural às proximidades de uma charneca, Macbeth, general escocês virtuoso e respeitado, cruza o caminho das bruxas sem imaginar que teria os pensamentos invadidos pela dúvida ao ouvir delas a profecia em forma de saudação: depois de ser chamado de “Tane de Glamis”, seu atual título de nobreza, ele é também reverenciado como “Tane de Cawdor” e, por fim, “rei que sereis um dia”. A essas palavras, o protagonista inicialmente reage com descrença, pois tem ciência da sua presente condição, mas, após o sumiço das aparições, muda de semblante quando é abordado pelo nobre Ross e investido, a pedido do rei Duncan, do título de Tane de Cawdor. Estremecido e deveras incitado pela honraria nobiliária recém-conquistada, Macbeth recorda-se do sinistro encontro e passa a devanear a projeção de que “o melhor virá depois”.
Começa, então, como lembra Barbara Heliodora, a trajetória de “um homem cheio de qualidades, bom súdito”, que “a certa altura é dominado pela ambição”. No solilóquio do final do 1º ato, ele próprio reconhece que nenhuma intenção já o ocupa além da “alta ambição” (“vaulting ambition”) e que seria bom se o golpe a que queria submeter o rei detivesse também as consequências do ato, se o assassínio “fosse aqui tudo e fim de tudo”. Mesmo o amigo Banquo alertando-o de que, “muitas vezes, para perder-nos, / Os agentes das trevas são verídicos”, a perspectiva de ser coroado monarca seduziu-o de tal forma que não havia mais jeito de a predição oculta das estranhas irmãs abandonar a sua mente.
Vale destacar que, conforme acentua Frank Kermode, desde o momento em que se concebeu o atentado contra a vida de Duncan até o assassinato propriamente dito, “a peça tem lugar em um mundo de dúvida e decisão, que tem muito de um pesadelo”. Embora Jan Kott certa vez tenha afirmado que a obra seja sustentada por somente um tema, o assassinato, é preciso averiguar as primícias psicológicas que conduzem aos sucessivos crimes. Até a efetivação do regicídio, por exemplo, uma luta interior toma conta de Macbeth. Inicialmente ele titubeia em permanecer com o plano de morte, sendo visto pela esposa como alguém de natureza “cheia do leite da ternura humana”, sem a “malvadez” que pode levar à grandeza; em seguida, deseja respeitar o hóspede ilustre e não matá-lo, mas, como parte dos recônditos conflitos do personagem, é convencido pela própria Lady Macbeth a ser na ação o mesmo que no desejo.
Como um sujeito de limiar entre o fazer e o não fazer, Macbeth está entre a aparência e a realidade: um rosto no qual “se podem ler estranhas coisas” ou se pode transparecer “a inocente flor”, e, na mesma medida, um pensamento em que “o assassino é ainda / Projeto apenas”, mas em que já se percebe o reflexo de um “falso coração”, cujo íntimo esconde uma “trama hedionda” e sanguinária. Nesse limite, conforme aponta Barbara Heliodora, a ambição, que antes o fizera um exemplar servidor da pátria, destrói-lhe a “escala de valores”, “permitindo que seu potencial passe a servir aos interesses do mal”.
A partir desse ponto, a obsessão pelo trono é tão intensa que as faculdades psíquicas do personagem-título ficam paralisadas “E nada existe mais senão aquilo / Que não existe”. O sentido do mundo passa a ser a projeção daquele augúrio assombrado personificado pelas bruxas, logo Macbeth torna-se um títere dessa ideia compulsiva a ponto de ser conduzido ao delito pela visão febril do punhal oferecido para o ataque. Aqui se percebe que a peça como um todo “exibe grande preocupação com o tempo”, segundo Kermode, ao passo que as ações presentes só têm validade quando arquitetadas para interferir no futuro. Não haverá paz a quem se veste “com roupas emprestadas” e ocupa um lugar que de direito não é seu. Macbeth mancha suas mãos com o sangue do rei, porém não pode parar nesse ato: “o sangue pede sangue” porque as ameaças à manutenção do status usurpado necessitam ser antevistas e previamente assaltadas. “Ser rei não é nada”, ele diz, “há que sê-lo sem perigo”.
Essa proposição, dita pelo tirano após a sua investidura real, visa à validação de novos assassinatos, afinal ele sustenta uma “coroa estéril” e um cetro alvo da cobiça. De Duncan a Banquo, a quem as criaturas previram ser “pai de reis”, de Malcolm, príncipe recém-investido, a Macduff, considerado um conspirador, todos são vistos como inimigos. Por conseguinte, ganha cena o aniquilamento da humanidade de Macbeth em virtude da tentação do poder, já que conquistá-lo e mantê-lo a qualquer custo o faz superar o remorso de um atentado vil e permanecer na escalada de uma violência desmedida.
De acordo com Heliodora, fica a impressão de um “suicídio moral” praticado pelo personagem com a intenção de anestesiar a consciência e livrar-se do medo. À Lady Macbeth, em dado instante, quando esta dá sinais de desespero e lhe diz que ambos nada ganharam com o plano, ao contrário, tudo perderam, ele conclui que é melhor “estar com os mortos”, a quem eles mandaram ao túmulo, e viver em paz do que “sofrer no espírito a tortura / De um desvairo incessante”.
Extensa é a discussão que “Macbeth”, encenada pela primeira vez em 1606, permite e diversos são os temas e cenas a explorar. A trágica história do tirano escocês contada por Shakespeare, sob a simbologia das trevas e da escuridão, mostra como a ganância sentencia à morte o incauto. À atrocidade mesquinha resta a loucura; ao criminoso, as consequências da maldade e a certeza de que a vida é apenas “uma sombra que passa”, um conto cheio de som e de fúria, contado por um doido, “significando nada”. Essa reflexão derradeira ratifica que tamanho talento poético e cênico do escritor que, segundo Harold Bloom, “inventou o humano” não pode deixar de ser prestigiado.

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