“O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras

Fernando Pessoa (1888-1935) é um poeta que, em sua trajetória literária, conseguiu reunir em si um universo de estilos e de personalidades. Sua existência foi marcada pela máxima “sentir tudo de todas as formas”, na qual ele sintetiza a própria maneira de ser no mundo. Como, para a expressão artística que exercia com afinco, uma vida inteira não era suficiente, o grande gênio português fez de si muitos outros e deu a cada uma de suas criações autonomia, história e características poéticas singulares.
O heterônimo Alberto Caeiro é uma dessas obras-primas do desdobramento existencial pessoano, um mestre na arte do verso e na maneira de perceber as coisas, autor de “O guardador de rebanhos”, obra que se tornaria, aos demais heterônimos e ao próprio Fernando Pessoa, uma verdadeira inspiração. Nela, a vida ligada ao campo foi uma maneira que o poeta encontrou de desvincular-se não somente da agitação da cidade, mas também da civilização e da cultura, fato que proporcionou a ele desenvolver uma percepção natural em comunhão com a natureza e com as coisas a partir do modo como elas apareciam aos seus sentidos aparentemente despojadas de qualquer intelectualidade.
O livro é dividido em 49 poemas que delineiam uma espécie de “dia” na vida de Caeiro. Nos poemas iniciais, ele apresenta-se e diz como vê os objetos e como considera que eles deveriam ser vistos. Abre as portas de casa e inicia uma caminhada que se encerrará com o cair da noite, com o fechar das janelas à luz do candeeiro. Nos primeiros versos, já começa a falar de sua vida: “Eu nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse…”. Fala que, embora não seja pastor, sua “alma é como um pastor”, e ele conhece a natureza porque vive próximo a ela, no campo, olhando a paz ao redor. Todo o poema inicial é uma forma de apresentar a simplicidade e a naturalidade de sua poesia.
Na sequência do texto, dos poemas II ao IV, reitera a descrição de uma vida natural, falando da importância dos sentidos (“Não tenho filosofia, tenho sentidos”), do abandono do pensamento, que não permite ver as coisas, e do contato com a natureza. Segundo Ricardo Reis, outro heterônimo, a obra de Alberto Caeiro se revela “com o quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão”, colocando-se além do habitual. Como Caeiro era “ignorante da vida e quase ignorante das letras”, sua obra se fez por um “progresso imperceptível e profundo de sensações”, ou, antes, “de maneiras de as ter”. Reis ainda fala que a obra de Caeiro faz uma “reconstrução integral do paganismo em sua essência absoluta”. No poema V, por exemplo, é exemplar o verso em que diz “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.
Richard Zenith, em um artigo intitulado “Caeiro triunfal”, comenta que essa ideia de vida simples fez que Ricardo Reis e António Mora, que pregavam o paganismo, e Álvaro de Campos, que celebrava o Sensacionismo, fossem discípulos confessos de Caeiro, para quem, segundo Zenith, “paganismo e Sensacionismo eram, no fundo, a mesma coisa: a percepção direta e imediata da realidade”. Dos heterônimos de Fernando Pessoa, Caeiro é o que possui essa ligação direta com a natureza, ensinando aos outros o caminho para o encontro definitivo com ela, algo que, segundo ele, nem mesmo os gregos, com o seu paganismo primitivo, conseguiram.
Definindo-se, Caeiro diz: “sou um homem que um dia, ao abrir a janela, descobri esta cousa importantíssima: que a Natureza existe. Verifiquei que as árvores, os rios, as pedras são cousas que verdadeiramente existem. Nunca ninguém tinha pensado nisto”. Assim, afirma ser simplesmente alguém que, ao reparar nas coisas um dia, percebeu que elas estão ali como existentes acima de qualquer significação que se possa atribuir a elas. Essa sua atitude natural, e à primeira vista ‘ingênua’, permite-lhe ver realmente o que a cultura revestiu de conceitos e de ideias; a partir dali podia ver a natureza. Em suas palavras, “fiz a maior descoberta que vale a pena fazer (…). Dei pelo Universo. Os gregos, com toda a sua nitidez visual, não fizeram tanto”.
O oitavo poema faz um longo relato do menino Jesus, que fugiu da região celeste e se fez humano novamente para escapar do fingimento e da falsidade do céu. Ao longo dessa passagem, toda a existência dele é ligada a uma vida comum de menino, fazendo travessuras e gozando a paz da natureza, ensinando a Caeiro: “A mim ensinou-me tudo / Ensinou-me a olhar para as coisas” a partir de uma vida tranquilamente sensitiva, sem pensamentos. O menino que, segundo ele, “mora comigo na minha casa a meio do outeiro”, e, muito mais, “dorme dentro da minha alma”, acaba por ser a “criança tão humana que é divina”, é a sua vida cotidiana e aponta a direção de seu olhar. Ao final, ele termina com uma pergunta: por que essa história de seu menino Jesus não é mais verdadeira do que as outras que as religiões ensinam?
Considerando o pensamento de Merleau-Ponty, vemos que há uma aproximação entre a percepção fenomenológica e esse modo de estar no mundo de Alberto Caeiro. O “retorno ao mundo vivido” de que fala Merleau-Ponty é encarnado por Caeiro como modo existencial. O filósofo francês diz que nosso “inventário do mundo” está ligado ao “tecido sólido” do real, a uma certa facticidade da própria existência, que nós habitamos um mundo já dado. Nesse sentido, “O guardador de rebanhos” é um projeto visual, efetivo e fenomênico da consciência habitando esse “tecido do real” como, de fato, ser-no-mundo. Para tanto, é célebre a frase “Pensar é estar doente dos olhos”, na qual Caeiro assume que a atitude racional é um desbotamento do universo perceptível tal como ele se apresenta.
No poema XX, o autor reitera esse movimento quando afirma que é preciso “Sentir como quem olha / Pensar como quem anda”. Já no poema XXIV ele declara que “O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar”. Isso mostra que Alberto Caeiro exibe uma experiência poética enraizada em uma existência vivida como parte da natureza, como sendo ele mesmo participante da visibilidade que o mundo possui. Toda a atividade inteligível diante do mundo faz que não o vejamos, porque o pensamento cobre o olhar (faz “correr as cortinas da janela”). Existe, para ele, uma ligação de oposição, de exclusão, entre ver e pensar: um exclui o outro, o sujeito diante das coisas não deve refletir sobre elas para não perder a visibilidade que possuem, por isso ele mesmo diz que sua janela “não tem cortinas”. O mundo é espetáculo para a visão, não motivo para uma intelecção sobre ele.
Fernando Pessoa destaca que Alberto Caeiro, a partir dessa atitude natural e simples, tem a capacidade de deixar-nos perplexos. Nele, “somos arrancados à nossa atitude crítica por um fenômeno extraordinário”, que espanta e que carrega em si uma novidade “excessiva” que “perturba a nossa visão dele”. Esse estado de perturbação emerge da maneira como Caeiro apresenta as coisas e da forma como as vê, com olhar atento para a existência ‘encarnada’ da natureza.
Merleau-Ponty, ao falar sobre a visão, afirma que é preciso também considerar o corpo como “operante e atual”, pensá-lo como um entrelaçamento de “visão e movimento”. O corpo “móvel”, ele diz, “conta no mundo visível, faz parte dele, e é por isso que eu posso dirigi-lo no visível”, já que ele se desloca no meio da paisagem e vai em direção às coisas. A consciência completa, corporal e sensitiva a que visa a poesia caeiriana, é um passo para uma unidade entre o corpo e a mente, um estado de vida que, traduzido pela linguagem poética, ensina a placidez da realidade por vezes deturpada pela racionalidade excessiva.

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