Por: Daniel Paulo de Souza
Fabulações transformadoras
Quando o advogado Sr. Utterson começou a ler as linhas do depoimento completo do Dr. Henry Jekyll sobre o caso que envolvia diretamente o Sr. Edward Hyde, ali encontrou uma inesperada constatação na qual o ilustre doutor concluía que “o homem não é, na verdade, um só; mas, de fato, dois”. Ele admitia, com essa afirmação, a presença das “zonas do bem e do mal” que compõem a natureza humana e que regularmente entram em debate na consciência. Ao mesmo tempo, também reconhecia que essa inferência só foi possível depois de uma clara percepção de si: Dr. Jekyll sentia nele próprio a “profunda e primitiva dualidade do homem” e, por esse motivo, identificava-se radicalmente como “dois”.
Embora essa fala apareça no último capítulo de “O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde” (1886), romance célebre em português com o título “O médico e o monstro”, do poeta e escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), pode-se dizer que ela corresponda basicamente ao argumento que permeia toda a construção narrativa. Nas palavras de Luiz Alfredo Garcia-Roza, a questão do “duplo”, ou da “clivagem do psiquismo”, está no cerne dessa obra não como uma simples menção a um outro exterior, mas a um ser discordante interior e habitante de quem originalmente o descobriu em si. Esse recurso do duplo na literatura, segundo Marly Amarilha de Oliveira, elabora “uma rede de concepções envolvendo a identidade humana” tal como atestou um dos protagonistas naquele depoimento.
O enredo de “O médico e o monstro”, ambientado na cidade de Londres sob a névoa intermitente que a caracteriza, convida, do início ao fim, a um suspense insólito. O advogado Sr. Utterson, descrito como alguém “reservado”, “frio”, “contido”, “homem de poucas palavras”, é impelido a uma investigação após tomar conhecimento, por meio do amigo Sr. Richard Enfield, de um fato classificado como “estranho”. Diante da solitária porta de um bloco de edifícios, Enfield relata que, tempos atrás, presenciou um acidente envolvendo o Sr. Edward Hyde e uma criança: ambos corriam, sem perceber, um em direção ao outro até que Hyde atropelou a pequenina, deixando-a, sem assistência, no chão. Ao ser pego na tentativa de fuga, não ofereceu resistência e apresentou, frente aos protestos dos parentes da menina, “um ar frio e escarnecedor”.
Perturba, na cena, a aparência do Sr. Hyde, um indivíduo que, de acordo com o relato, “não parecia um homem, mas um possesso”, alguém que emanava um aspecto detestável e provocava uma “forte impressão de deformidade”. O Sr. Utterson pessoalmente, ao encontrá-lo mais tarde na entrada daquela mesma porta, viu nele, acrescida a tais feições, uma “mistura maldita de timidez e audácia” que parecia torná-lo a irradiação de uma “alma monstruosa” transpirando pelos poros de um “invólucro de barro”. Todos esses traços, associados à baixa estatura e a uma voz rouca e sem fluidez, explicavam a repugnância que causava.
Essa ação inicial adquire um desdobramento inusitado quando o Sr. Hyde, para livrar-se dos que o importunavam pelo episódio da criança, ofereceu-lhes um cheque legítimo assinado pelo Dr. Henry Jekyll, o distinto médico que havia confiado a Utterson o próprio testamento e no qual estabelecia o “amigo e benfeitor Edward Hyde” como único herdeiro caso desaparecesse ou se ausentasse inexplicavelmente. Dessa maneira, conforme sugere Robert Mighall, a trama do livro passa a ser um mistério semelhante a uma história detetivesca em que os capítulos paulatinamente esclarecem as circunstâncias desse testamento e do relacionamento entre Jekyll e Hyde.
As preocupações do Sr. Utterson acerca do documento elaborado pelo nobre doutor só aumentaram à medida que lhe sobrevinha a visão desagradável do rude homem e lhe chegou, pela boca do Dr. Jekyll em pessoa, a confirmação de que a situação testamentária não podia ser alterada e, além disso, garantia ao Sr. Hyde acesso à casa e ao gabinete de Jekyll por força da curiosidade e do interesse que o último nutria pelo primeiro. No entanto, a tranquilidade era aparente e escondia uma estranheza maior que se revelaria quando Hyde assassinou brutalmente Sir Danvers Carew e, com isso, comprometeu a reputação do cavalheiro que lhe doaria a herança de um quarto de milhão de libras esterlinas.
Já não havia motivos para Jekyll, alguém “elegante”, de “rosto tranquilo” e portador de inteligência e bondade notórias, manter relações com um criminoso inescrupuloso. Por esse motivo, como reitera Mighall, ele renuncia veementemente ao protegido e procura, por meses, retomar “uma vida de respeitabilidade” descolada da imagem de um facínora foragido, até que o incidente com o Dr. Lanyon, amigo do Sr. Utterson e do doutor, iluminou definitivamente os persistentes enigmas: Hyde, cujo nome representa um jogo com o verbo inglês “hide”, que significa “esconder” ou “ocultar”, é, na verdade, o Dr. Jekyll, que havia descoberto uma droga, ou poção, capaz de separar de si o seu lado sombrio e oposto “em luta contínua no doloroso limbo da consciência”.
Isso explica a impossibilidade de ambos se confrontarem no desenvolvimento da história, visto que eles são, como diz Garcia-Roza, “dois modos de ser de uma mesma pessoa”. A poção não atua apenas como elemento de separação psíquica do bem e do mal, mas ajuda também a corporificar, na figura de Hyde, uma forma primitiva e “simiesca” do inumano e da amoralidade, ou, nas palavras do Dr. Jekyll, “o único ser no qual o mal existia em estado puro”. Consoante Mighall, trata-se da “libertação das peias do comportamento civilizado”, um alívio para quem considera a duplicidade da vida um fardo cruciante e irreconciliável.
A clássica narrativa de uma criatura interior “visceralmente maligna”, que habita um eminente e bem-sucedido médico e dele se desprende materialmente como personificação de um duplo corrompido, suscita a ideia de que cada sujeito carrega em si um outro “eu” como simulacro ou sombra, cujas características, na maior parte das vezes, tenta-se reprimir. Porém, segundo afirma Christian Ingo Lenz Dunker, neste outro se “concentram os desejos que não queremos admitir” ou “aprendemos socialmente a recusar”, mas que, experimentados no campo da subjetivação, são índices da nossa identidade a despeito de uma certa insistência em limitá-los. Stevenson, ao dar vida ao Sr. Hyde como “besta adormecida” que rompe a unidade da consciência a partir de um evento fantástico, incita o leitor a deslocar a atenção para alguns redutos da periferia do ego.
Freud, ao dizer que “o eu não é senhor em sua própria casa”, mostra que os atos conscientes dividem espaço com uma determinação inconsciente desconhecida e oposta às certezas propriamente racionais. Nesse sentido, Jekyll fala que a droga “abalava as portas” dessa casa que “aprisionava” as suas inclinações e permitia à virtude dormitar e à ambição despertar. Consumava-se, dessa maneira, o rompimento da dualidade e assegurava-se ao injusto realizar as suas aspirações sem quaisquer remorsos e ao justo seguir o caminho das boas coisas. Para o personagem, a perda da supremacia da nobreza para uma outra forma não era, enfim, algo menos natural.
O Dr. Henry Jekyll fez do Sr. Hyde um indivíduo com identidade própria: alugou-lhe uma casa no Soho, contratou uma empregada e, por fim, fez para ele uma conta independente no banco. Assim, das depravações feitas pelo duplo restavam a admiração e a certeza de ser ele um “manto impenetrável” e uma segurança garantida. O que um fazia, após ingerida a poção, já não pertencia ao outro. Mas a linha que os separava ficou tênue, e, vagarosamente, o doutor foi perdendo a parte original, a melhor, para o segundo “eu”, o pior. Ao cabo de tudo, a entrega à loucura, pelo vício da transformação, cobra o seu preço, deixa as suas más recordações gravadas na alma e apenas acentua a angústia da dualidade sem eliminá-la.