Ainda que muitos filmes e séries não coloquem explicitamente a Filosofia como temática das suas narrativas, é possível perceber motivações filosóficas em muitas delas. Vejamos cinco indicações de produções que trabalham nessa linha.
* Daniel Paulo de Souza, doutor em Letras, professor e gestor acadêmico nos ensinos médio e superior.
Dark (série)
A série original produzida na Alemanha trabalha temas muito caros à imaginação popular, às narrativas de ficção e à reflexão humana: a viagem no tempo e o apocalipse, ou o fim da vida conforme a conhecemos. Certamente os desdobramentos dessas temáticas e de suas possíveis consequências à existência despertam questões filosóficas sobre os limites da realidade e sobre as implicações das ações que praticamos no passado e no presente como fatores determinantes para comportamentos futuros. A partir disso, a série problematiza a noção de temporalidade e as construções místicas ou racionais que fazemos dela, seja do ponto vista empírico, filosófico ou científico. Na esteira dessa discussão, o enredo ainda traz à tona as teorias mais recentes sobre “multiverso” ou “realidades paralelas” capazes de coexistirem e de se afetarem mutuamente no espaço-tempo. Vale a pena o mergulho atento em uma narrativa que, desde o princípio, garante que tudo está conectado.
A Chegada (filme)
O filme, inspirado no conto “História da sua vida”, de Ted Chiang, propõe uma reflexão sobre a natureza da linguagem, mais especificamente sobre a forma como utilizamos as operações linguísticas para a comunicação e para a construção de uma ideia cultural de mundo. Tal discussão ocorre na história do pensamento humano desde a Antiguidade e desperta o interesse de profissionais de diferentes áreas, desde a Filosofia e a Linguística até a Neurociência. Entender os mecanismos sobre os quais opera a nossa capacidade de construir sistemas simbólicos e, por meio deles, significar a realidade à nossa volta é um esforço intelectual presente na obra de grandes pensadores, como Ferdinand de Sasussure, Ernst Cassirer, Bertrand Russell, Gottlob Frege, Wittgenstein, para citar alguns. A própria base científica por trás do experimento entre humanos e alienígenas no filme, a chamada hipótese Sapir-Whorf, é uma tentativa de mostrar de que forma a estrutura de uma língua dá certos contornos aos nossos pensamentos e às nossas percepções sobre o mundo.
O Quarto de Jack (filme)
Embora o filme aborde uma história de abuso e de violência, existe na narrativa uma questão de teor filosófico relacionada à chamada alegoria da caverna de Platão, presente na obra “A República”. Nela o filósofo grego propõe uma situação hipotética de pessoas acorrentadas que só veem, do mundo exterior, sombras projetadas no fundo de uma caverna. Isso significa que, dos existentes reais, a única coisa que conhecem durante toda a vida são simulacros, ou representações aparentes da realidade. Para Platão, libertar uma dessas pessoas e permitir-lhe caminhar em direção à luz seria uma oportunidade de deixá-la contemplar o verdadeiro conhecimento das coisas, ou a essência de onde provém o reflexo das sombras. Numa clara alusão à atitude do filósofo, a proposta da alegoria é mostrar como deve ocorrer a busca da verdade por trás dos simulacros, das essências por trás das aparências. No filme, a criança nascida em cativeiro só conhece do mundo aquilo que lhe é projetado pelos relatos da mãe. Ali, na limitação da circunstância, a luta pela sobrevivência acomoda a percepção do mundo real, mas não exclui a vontade de buscá-lo. O plano, portanto, mais do que envolver a fuga do quarto, é a esperança da libertação do ambiente das sombras e da contemplação da verdade por trás da escuridão.
A Good Place (série)
O aspecto cômico dessa série norte-americana não diminui uma reflexão existencial precípua que ela suscita: há vida após a morte? E, decorrente dessa interrogação inicial, uma outra muito cara à própria prática da Filosofia surge: qual o sentido da vida? Platão e Aristóteles já viam na admiração um grande impulso primordial para a atitude filosófica a partir do qual as demais investigações metafísicas se sucedem. É justamente no limiar desse impulso que a série coloca o espectador: quando a personagem principal se descobre morta e habitante de um lugar definido como “Good Place”, a narrativa passa a levantar questões referentes ao merecimento do paraíso, às ações praticadas em vida, ao valor das coisas, das pessoas e dos momentos, além, é claro, do valor último da própria existência. Saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos parece ser o substrato reflexivo das mais variadas culturas em diferentes épocas da História. Conforme Karl Jaspers, o homem pode ser alçado ao comportamento filosófico por três atitudes: a admiração, ou a capacidade de aperceber-se da própria ignorância; a dúvida, ou a suspeição das certezas previamente postas a fim de se atingir uma verdade sólida e inquestionável; e a insatisfação moral, ou o inconformismo com a realidade circundante a partir do momento em que o homem toma consciência de si próprio e questiona a sua existência. Todos esses ingredientes são despertados em nós quando assistimos a essa inteligente série sobre a vida pós-morte.
Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas (filme)
O encantador filme de Tim Burton coloca o espectador no limiar entre a fantasia e a realidade. Diante da narrativa que Edward Bloom faz da própria vida e dos elementos fantásticos que a envolvem, fica a dúvida sobre a veracidade do que é contado pela personagem. Porém, a ideia de literatura fantástica, segundo Todorov, pressupõe justamente a suspensão das certezas do mundo real, ou das referências imediatas que temos dele, a fim de que se crie uma atmosfera de referências subjetivas e mediadas. O resultado é uma construção cujo sentido só é possível dentro daquele universo ficcional criado e, portanto, só aceito segundo a lógica que lhe é própria. Por outro lado, para a filosofia cartesiana de René Descartes, só é real o que o cogito revela como claro e distinto, ou seja, o que é fruto da nossa capacidade de inteligibilidade, sendo a imaginação uma construção enganadora atrelada aos sentidos e, por esse motivo, à imprecisão. O certo é que, na tradição filosófica, não faltaram trabalhos voltados à noção de realidade como projeção da consciência, conforme se verifica no pensamento de George Berkeley, por exemplo. Essa fronteira entre real e imaginário, essência do filme de Burton, motiva reflexões, relações e uma dose considerável de encantamento com o universo narrado.