Reginaldo Penezi Júnior
Especial para o Correio
No meio jurídico, costuma-se dizer que “o Direito constrói a sua própria realidade”. Em alguns casos, podemos afirmar que o Direito quer inaugurar uma realidade diferente da que nos cerca. É esse o espírito da Constituição Cidadã de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.609/90), que alçaram a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, e não mais como meros objetos de proteção e vigilância, seres inferiores ou inferiorizados pelo sistema, tratamento característico do panorama legal anterior, na vigência do antigo Código de Menores (Lei 6.697/79).
Seguindo diretrizes internacionais, até a linguagem a nova legislação procurou alterar, abandonando o termo “menor”, rótulo sugestivo porque a condição infantojuvenil aqui era tida como algo menor mesmo. Não era um problema “nosso”, mas um “caso de polícia”, cabendo ao Estado o papel de afastar da sociedade os “menores em situação irregular”, segregando-os em instituições que, em vez de protegerem, na verdade castigavam e desprotegiam os infantes. Essa ideia é bem retratada nos filmes brasileiros “Pixote, a lei do mais fraco” (1980) e “O contador de histórias” (2009), tramas baseadas na vida de crianças (ou “delinquentes juvenis”) recolhidas em internatos supostamente reeducativos.
O sistema jurídico e a mentalidade da época, enfim, propiciavam não só a exclusão social da criança ou adolescente que cometesse infrações ou fosse carente de recursos financeiros (criminalização da pobreza), mas a exclusão legal da própria criança ou adolescente que não estivesse em situação considerada “irregular” pela lei, ou seja, sob o estigma da miséria e/ou da delinquência.
Esse modelo foi substituído pela Constituição Federal de 1988, que concebeu o dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigo 227).
Assim, a questão infantojuvenil deixou de ser tutelada apenas pelo Estado e restrita ao “de menor” marginalizado, pois toda a comunidade passou a ter o dever de zelar pelos direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer espécie e com absoluta prioridade, inclusive em detrimento do idoso.
Nesse novo paradigma, nasceu o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, com caráter bem mais abrangente em matéria de direitos, titulares de direitos e, sobretudo, quanto aos agentes corresponsáveis pela concretização desses direitos das pessoas com menos de 18 anos de idade, dispondo sobre a proteção integral e especial da infância e da juventude.
Por tudo isso, esse importante documento pode ser visto como o marco da era dos direitos da criança no Brasil. Parafraseando um célebre jurista, “o problema fundamental em relação aos direitos da criança, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.” A desigualdade social ainda acentuada e os resquícios autoritários do País reforçam a inquestionável relevância do ECA, que completou 30 anos em 2020 com acúmulo de muitas conquistas, mas que ainda desafia a transformação da realidade. – O autor é , advogado.