Milton Cardoso
Especial para o Correio
Quando fui convidado pela equipe desse jornal para escrever sobre o Dia das Crianças, minha sugestão foi trazer uma “licença poética” a esse caderno e presentear seus leitores com a arte de jovens artistas itapetininganos.
Logo, lembrei de um artista muito sensível que atua nos palcos e nos tribunais com a mesma desenvoltura. Mayara Nanini produziu um conto inédito sobre sua paixão pelo seu bisavô. O trabalho a seguir é uma ode à vida, uma aventura maravilhosa. É impossível, ao ler, não pensar em nossa infância, nos nossos avós.
Juntam-se a Mayara, desenhistas consagrados ou promissores de nossa cidade, que seus sublimes traços nos convida a fantasia, tão ausente da vida. Momento único nesse semanário, espero que através da magia do trabalho desses seis artistas possamos resgatar um pouco dos momentos mágicos, temperos essenciais a vida. Viva nossas artistas, eternas crianças que nos presenteiam com seus devaneios.
O DIA EM QUE VOLTEI A COLORIR
Por: Mayara Nanini Horiy
Era uma madrugada fria de junho. Época de São João. Ele já não estava de cócoras. A morte havia o levado na época que mais gostava, e um vazio se instalou em mim.
Durante o velório no Mato Seco, minha família se reunia em círculos. Entre tantas conversas, falavam histórias sobre saci e mula sem cabeça.
Vovô havia ido embora e o que eu menos queria, era ouvir as histórias que antes, eram contadas por ele. Desapareci daquele lugar. Não sabia ao certo para onde caminhar. Preguiçosamente, o dia começava a clarear.
Reparei uma porteira com um grande buraco na madeira. Curiosa observei o buraco, o qual era bem iluminado. Subitamente, algumas folhas voaram, e pararam no ar em forma de redemoinho.
Lembrei da história de minha prima. Ela disse que, ao ver esse redemoinho, um homenzinho lhe deu o ar da graça. Não demorou para que eu avistasse um gorrinho vermelho, seguido de uma gargalhada. Aquele menino pulou, atravessou o buraco e me chamou para uma aventura. “Seria ele um saci?”
Tentei explicar para aquele moleque sapeca que isso poderia ser perigoso. Meu vovô contava que, na frente da sua casa de barro, havia uma mata fechada. Ele e seus irmãos, na infância, viram uma mula que soltava fogo pela cabeça. Só faltava entrar naquele buraco iluminado e dar de cara com a tal Mula Sem Cabeça, soltando fogo e implorando por ajuda para a retirada do cabresto.
A curiosidade prevaleceu. Passei pelo buraco infinito com receio de ficar toda arranhada. Não tinha tantas habilidades como meu avô, muito menos sua capacidade como artesão para trabalhar com madeiras e bambus. Quando passei para o outro lado, o buraco se fechou. O saci também havia sumido.
Nisso, apareceu um menino vestido de índio. Tinha uns 10 anos. Era alto e magro. Muito magro. Seu arco e flecha feitos de bambu, eram bem esculpidos. O traje fora bem elaborado e o menino, descalço, parecia um tanto quanto festeiro.
Vi outras crianças correndo. Os meninos, sapecas, tinham algumas lenhas na mão. As meninas ninavam sabugos de milho, os quais tinham até roupa. Como eram parecidas com minhas bonecas!
Logo em seguida, me convidou para brincar de “cabra-cega” consigo e seus irmãos.
Todos, gargalhavam e entoavam para o “indiozinho” vendado que, naquele momento era a cabra-cega: “Cabra cega o que trouxe pra mim? ”. Ele respondeu: “Um saco de pão! ”. E elas continuavam: “Me dá um? ”. O menino respondia: “Dou não! ”. Então, as crianças falavam: “Vá embora, então”.
Tempo depois, a mãe chamou as crianças, as quais entraram na casinha pequena. Com voz forte gritou: “Nato, venha logo. A farinha com leite já está pronta”. O menino que agora tinha nome, não saiu mais da casa.
No lugar dele, estranhamente, saiu um homem mais velho, com seu arco e flecha. Era do tipo que o olho fechava quando sorria.
Estava animado. Contou que ajudaria a construir a capela de São João Batista, lá na cidade. Depois, pularia fogueira e dançaria sob o som de sanfona.
Alguém me chamou. Meu Deus! Sandra havia me encontrado. Minha irmã estava vestida com o lenço vermelho da mamãe, para simbolizar uma capa de heroína. Usava óculos de sol, o qual era maior que seu rosto. Então, a cada “voo”, fazia uma pausa para segurá-lo, gritando: “Poderosa Isis”.
Em seguida, me chamou para brincar de outras coisas: de nos esconder, de vaca amarela e balança caixão. De repente, se cansou. Foi em direção ao açude. A perdi de vista e senti a brisa bater no meu rosto.
Às minhas costas, um “índio” bem mais velho, de cócoras, havia observado nossas brincadeiras. Não reclamou dos gritos, sequer falou. Apenas nos fitou, e, com as mãos calejadas fez belas peneiras. Peneiras iguais àquelas que vovô fazia.
Baixinho, reclamava de dores nas costas, visto que fora chifrado por um touro o qual seu filho havia comprado. Dizia que, depois do acidente adoeceu um pouco e não conseguia ficar tanto tempo naquela posição.
Uma senhora baixinha saiu da casinha de barro, e foi ao seu encontro. O casal recitou um versinho, que me lembro de ter ouvido em algum lugar: “Ia indo pelo caminho, e encontrei uma coruja. Pisei no rabo dela. Me chamou de cara suja”.
O verso me arrancou um sorriso, o qual fora acompanhado por lágrimas. Tudo era muito especial, e senti meu vô perto de mim.
A senhorinha foi beijada na bochecha, por seu marido e, timidamente o repreendeu: “Fortunato, não faz isso. Tem gente olhando”. Aquele nome soou muito familiar.
Inesperadamente, o casal olhou em minha direção. O rosto deles ganhou forma. Vovô e vovó estavam ali o tempo todo. Eu poderia eternizar aquela imagem. Não tinha a menor intenção de me libertar daquele mágico momento.
Meu vô se despediu com um sorriso e, de relance, desapareceu naquela imensidão. A mesma luz que encontrei no buraco da cerca invadiu aquele lugar. Abri os olhos. Percebi que estava abraçada com um porta-retratos. Nele, uma foto. Vovô Fortunato, vestido de índio, com seu arco e flecha. Era sábado e eu tinha dormido mais que o normal.
Na sala, minha vovó Anália estava no sofá, com agulha, étamine e pano, terminando uma toalha de ponto cruz. Sentei ao seu lado para “prosear”. Suspirando, ela disse que havia pensado muito no meu avô, Fortunato Nanini.
Matutei: “Não só lembrei, assim como também revivi bons momentos”.
Beije-a na testa e olhei pela janela. No quintal, os bambus estavam jogados, sem ninguém para transformá-los em peneira ou cestos. Igualmente, eu estava ali, sem ouvir histórias de mula sem cabeça, ou do saci Pererê. Inexistia barulho de crianças brincando, versos ou canções.
Percebi como meu avô era uma eterna criança. Coloriu sua vida como pôde. E, o melhor, transmitiu cada graça aos parentes e amigos que conheceu. Senti, que diferente dele, eu estava deixando minha criança interior adormecer. No meu sonho (seria realmente um sonho?), vi que a vida voa e merece ser tratada com carinho.
Fui para o quintal e fitei aqueles bambus. Tinham cheiro de infância. Chamei minha irmã, para que juntas, déssemos algum destino a eles. Ao invés de me ajudar, jogou água em mim. Enchi um balde de água para dar “o troco”. Voltamos a ser crianças como há anos não fazíamos. Enquanto brincávamos, tive a certeza que não estávamos sozinhas. Como uma brisa suave, senti a presença de meu vô Nato, com a certeza de que satisfeito, ele nos observará eternamente, sentado de cócoras e fazendo suas peneiras.
Mayara Nanini:Advogada e artista, cresceu ouvindo as histórias de seus bisavós, e se apaixou por elas. Embora não tenha conhecido seu bisavô Fortunato Nanini, a sua vó Cecília, sua tia e sua mãe sempre transmitiram histórias e lembranças lindas e vivas do “Seu” Nato como era carinhosamente conhecido.
Rafael Lopes: Apaixonado por HQs desde criança e por desenho, autodidata decidiu criar suas próprias HQs e ilustrações. Desenvolveu alguns projetos sociais na cidade envolvendo a 9.ª arte e também ministrou aulas sobre o assunto. Atualmente possui um canal do Youtube, onde mostra seu trabalho e ensina um pouco da arte.
Gabriel Buzzo: O funcionário público Gabriel Buzzo, masi conhecido como Gadão, escolheu grafitar vacas amarelas em diversas situações inspirado em artistas musicais e personagens de filmes, da TV, das histórias em quadrinho (HQ) e dos games. Gadão conheceu o grafite com 13 anos durante um projeto social realizado na escola onde estudava.
Luan Dallagnol: Jovem talento da cidade, o desenhista tem 18 anos de idade, atualmente dá aulas de desenho hiper-realista no atelier de Henrik Ribeiro. Desde 2015, está envolvido em diversos projetos artísticos na cidade. Suas principais referências na área são John Lasseter, Walt Disney e Guilherme Briggs.
Hiromi Yamamoto: Estudante do 3° ano do ensino médio da EE Peixoto Gomide é apaixonada pelo universo dos desenhos, não importa o estilo ou histórias, cada uma a faz mergulhar em um mundo diferente. Seu artista preferido é o animador Hayao Miyazaki. Sua outra paixão é ser uma cosplayer, uma atividade que requer muita dedicação e esforço.
Luiz Henrique Cleto: Professor de Arte da Rede Estadual, Cleto sempre foi muito engajado com as atividades artísticas da cidade. Formado em cenografia pelo Conservatório de Tatuí destacou-se nos palcos da cidade como ator primeiramente no Grupo Arco-Íris e depois no Sesi. Leitor voraz, é fã incondicional de Fiódor Dostoievski.