Milton Cardoso
Especial para o Correio
Em breve será comemorado o centenário da Semana de Arte Moderna, aberta em 11 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Até o dia 18 do mesmo mês este espaço abrigou continuamente uma exposição de artes plásticas. Nos dias 13, 15 e 17 foram realizados espetáculos de dança, música, conferências e leituras de prosa e poesia. Entre os diversos artistas que se apresentaram no revolucionário evento, estavam o compositor, violoncelista e maestro Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e a pianista Guiomar Novaes (1894–1979), grandes expoentes da música, com reconhecimento nacional e internacional. Estes artistas, em momentos distintos de suas carreiras, abrilhantaram os palcos de Itapetininga com seus talentos ímpares.
A jovem Guiomar Novaes, com apenas 11 anos, se apresentou no Clube Venâncio Ayres no dia 21 de agosto de 1905. Segundo o correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”, a cidade teve a oportunidade de “admirar mais uma dessas manifestações com que a natureza distingue os seres privilegiados. Trata-se de uma menina (…) e que apesar de sua tenra idade, tem-se revelado uma pianista excelente. Guiomar Novaes, tal é o nome dessa genial criança, acompanhada de seu velho pai, veio a esta cidade para dar um de seus apreciados concertos”, destacou.
Na apresentação Guiomar executou Chopin (“op. 69”), Schumann, Beethoven (“Sonata em Sol Maior”) e Leuset (“Primeira Rapsódia Húngara”). O programa do concerto ainda teve a participação do maestro e professor da Escola Complementar Caetano Bifone e das concertistas amadoras Alice Brisolla, Júlia Vasques e Ernestina Sampaio.
A intenção do pai, Manuel José da Cruz Novaes, com as apresentações da jovem Guiomar Novaes por várias cidades, segundo o correspondente da época, era de “formar um pecúlio afim de poder aperfeiçoar-se na dificílima arte que imortalizou o nosso compatriota Carlos Gomes”. Nesta época, a pianista já se apresentava nos saraus promovidos pelo professor Luigi Chiaffarelli no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Suas performances ganharam a admiração da crítica e do público. Três anos após sua marcante apresentação em Itapetininga, Guiomar fez sua primeira apresentação como profissional no Rio de Janeiro, executando a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, de Gottschalk, e ganhou uma bolsa para estudar na França, fornecida pelo governo do estado de São Paulo, segundo o site Instituto de Piano Brasileiro.
Guiomar Novaes aos 15 anos candidatou-se para entrar no Conservatório de Música de Paris, sendo avaliada por um júri formado por célebres músicos como Claude Debussy, Moritz Moszckowski e Gabriel Fauré foi “aprovada em primeiro lugar, dentre 388 candidatos para 11 vagas, das quais somente duas reservadas a estrangeiros”, conta o site.
A pianista conquistou o público europeu a partir de 1911. Com os adventos da 1ª Guerra Mundial mudou-se para os Estados Unidos. Sua carreira foi extremamente bem-sucedida naquele país. Destacava-se ao interpretar Schumann e Chopin, sendo grande divulgadora da obra de Heitor Villa-Lobos. Em 15 de fevereiro de 1922, Guiomar sobe ao palco do Municipal, cessando as enormes vaias e insultos direcionados a Oswald de Andrade. Sua última apresentação pública ocorreu em 1973, no festival de Campos do Jordão. Faleceu no dia 7 de março de 1979.
Ao contrário de Guiomar, Villa-Lobos quando se apresentou em Itapetininga, em 1931, já era um maestro e compositor de prestígio na Europa. Em sua passagem pela cidade, escreveu uma dedicatória à Escola Normal. O importante documento assinado por Villa-Lobos, pela sua esposa Lucília Guimarães Villa-Lobos (também presente na Semana de 22) e pelo pianista João Jorge Lima, foi localizado décadas depois, em 1988, pelas professoras Neuza Aboarrage e Maria Aparecida Vendramini, tornando motivo de grande orgulho para os itapetininganos. O concerto apresentado na cidade, provavelmente em 11 de agosto, fez parte da “Excursão Artística Villa-Lobos”.
Uma Turnê pelo Estado
Ao retornar ao Brasil, em junho de 1930, Villa-Lobos encontrou um novo ambiente causado pela Revolução de 1930. Nada estava favorável aos modernistas na época. Para o maestro, a nomeação em novembro de 1930, do interventor do Estado de São Paulo, João Alberto Lins de Barros, foi fundamental para seus projetos no início da Era Vargas, como a “Excursão Artística Villa-Lobos” pelas cidades interioranas.
O objetivo da “Excursão Artística” era despertar nas plateias interioranas o gosto pela música brasileira e a defesa da arte e do artista brasileiro. A turnê envolvia mais de 50 cidades, todas realizadas pela malha ferroviária estadual custeadas pelo Governo. Outras despesas (hospedagem, locação do espaço, divulgação) eram patrocinadas pelas prefeituras e o cachê dos artistas e demais integrantes vinham da bilheteria.
O primeiro concerto ocorreu em 20 de janeiro de 1931, na cidade de Campinas. O quarteto original era formado por Villa-Lobos (tocando violoncelo), a pianista Lucília Guimarães, a cantora Nair Duarte Nunes e a pianista Antonieta Rudge, além do produtor Cleto Rocha e técnico de piano de cauda Antônio Chechim Filho. A apresentação em Itapetininga ocorreu numa quarta etapa do projeto, etapa ocorrida entre os meses de julho e agosto.
Em agosto de 1931, Villa-Lobos cedeu uma entrevista ao jornal “Estado de São Paulo” e avaliou que o resultado até aquele momento tinha sido muito satisfatório. “O resultado dessa primeira campanha foi para mim um orgulho como brasileiro, e como o amigo em especial da plateia de São Paulo. Tenho o maior desejo de ver a nossa plateia na altura das mais cultas que tive a felicidade de conhecer na Europa”.
Nessa reportagem destacou que as cidades que mais o surpreenderam na turnê foram Avaré, Botucatu, Itu, Presidente Prudente, Salto, Santa Cruz do Rio Pardo, Taubaté e Itapetininga, “onde fomos recebidos por quatro mil pessoas e onde nos foi dado assistir ao extraordinário orfeão da Escola Normal, um dos melhores orfeões de São Paulo, e que é dirigida pelo professor Modesto (Tavares) de Lima. Nessa cidade o diretor da Escola Normal e a sua congregação e as de outras escolas foram encantadores conosco”, lembrou.
A “Excursão Artística” chegou a Itapetininga de automóvel, graças a uma cortesia da comitiva tatuiense. Segundo o livro escrito por Chechim Filho, na entrada da cidade foram recepcionados pelos alunos da Escola Normal. Após uma breve saudação da comissão Itapetiningana seguiram para a prefeitura, acompanhados pelos estudantes e por inúmeras pessoas. Em frente ao prédio da Prefeitura foi realizada a saudação oficial pelo prefeito Antônio Fogaça de Almeida. Ao final da saudação, o coral da Escola Normal “cantou uma peça cujo nome não me lembro”, escreveu.
Chechim Filho escreveu seu livro, publicado em 1987, baseado em sua memória dos eventos artísticos que participou, obviamente há dados incompatíveis. Como há poucos registros dessa época, a dedicatória localizada pelas professoras Neusa e Maria Aparecida e a foto com a presença das normalistas, dos músicos e professores da Escola Peixoto Gomide, nos ajuda a entender que na chegada a Itapetininga, Villa Lobos tenha sido recepcionados pela comitiva Itapetiningana na Escola Normal e apreciado o orfeão regido pelo professor Modesto Tavares de Lima.
O concerto foi realizado no Cineteatro São José. O espaço do palco e a boa acústica do local (hoje demolido), foi elogiado por Antônio Chechim Filho. Segundo o técnico de piano, o concerto apresentado por Villa-Lobos, Lucília, Nair Nunes e Souza Lima foi aplaudido com muito entusiasmo pelos itapetininganos.
Após 90 anos, a presença da “Excursão Artística” mostrou-se um projeto ousado, marcando uma nova etapa na vida de Heitor Villa-Lobos como educador e possibilitando ao público ao interior do Estado ter acesso aos grandes artistas da época. Outra herança desta turnê foi a composição, durante as viagens de trem, da marcante “O Trenzinho do Caipira”, escrita durante segunda etapa da “Excursão”, entre fevereiro e março, de acordo com o pesquisador Nataniel Marcos Bádue Filho. Infelizmente, como não conseguimos o programa da peça, não podemos saber se o público itapetiningano teve a honra de ouvir as primeiras audições da peça.