Milton Cardoso
Especial para o “Correio de Itapetininga”
Há vinte anos a cultura popular itapetiningana perdia um de seus maiores mestres de cururu: Plácido dos Santos popularmente conhecido por Morenão (1927–2002). “Mestre na arte do improviso, mestre no desafio rimado e mestre dos versos trovados. (…) O Morenão era um daqueles artistas natos, com a criatividade vertendo pelos poros. Ouvir os seus cantos improvisados era um privilégio. Aquele homem cantava os temas com simplicidade, maestria e com tamanha sinceridade que estar na sua presença era um momento mágico e incomparável, era um bálsamo, um delicioso refresco na quentura agitada do dia-a-dia”, escreveu Bob Vieira, um dos principais pesquisadores sobre cultura popular da região, em 2002.
Devido a importância de Morenão como cururueiro, o músico Bene Martins, filho do violeiro Zé Martins, intitulou a 1ª Mostra de Cururu ocorrida no último mês de dezembro com o nome de Morenão. Durante a Mostra houve uma disputa de cururu entre as cidades de Porto Feliz e Angatuba, homenagem a família e a exibição de um vídeo de Morenão cantando no Grêmio Estudantil.
Artista carismático, infelizmente há poucas matérias escritas sobre esse gênio da cultura popular. Sobre sua arte há poucos registros sonoros ou visuais e talvez, nenhum registro escrito. “Ele sempre dizia que sua escrita estava nas suas ideias”, relata um de suas filhas, Heloisa Maria de Oliveira Santos Silva.
Morenão comentava que cantava desde dos 12 anos de idade. Disse certa vez ao jornal da Casa do Adolescente que nunca estudou música. “O que eu sei aprendi com o meu padrinho (Jacinto). No sítio poucos sabem ler e meu jeito de cantar fui eu que criei”. Outra filha de Morenão, Eveli Aparecida de Oliveira Santos Almeida, conhecida como Lila, disse que seu pai dizia que devido a ser menor de idade tinha de “pedir permissão para ao pai, José Valêncio, para cantar em festas onde era chamado”.
Na adolescência conheceu a sua esposa Maria Aparecida de Oliveira Santos. “Mamãe cantava na igreja da Rocinha, tinha uma voz muito bonita. Ela também tocava violão. Papai não tocava. Em casa, mamãe tocava e ele cantava”, lembra Heloísa. E completa a irmã Lila: “Mamãe contava que quando conheceu nosso pai, ele ainda participava de corrida de pneus e outros tipos de brincadeiras da época com os meninos. Eles se casaram um dia depois dele ter completado 18 anos, no dia 6”, comenta.
Dessa união de 42 anos tiveram nove filhos: José Geraldo, José Pércio, Joaquim Carlos, Reinaldo Donizeti, Lúcia de Fátima, Maria Odete, Maria Lígia, Lila e Heloísa. “Foi uma vida muito difícil, mas meu pai era um homem muito batalhador, digno, guerreiro. Nunca reclamava ou deixava faltar algo em casa. Apesar de enérgico era extremamente amoroso… saudades! ”, diz emocionada Lila.
Mesmo depois do casamento continuou morando no bairro da Rocinha. No final da década de 1940 mudou-se com a família para Porto Feliz em uma fazenda de corte da cana. Nesse período provavelmente aprimorou sua técnica, afinal Porto Feliz, região do Médio Tietê, a manifestação do cururu é muito forte.
Morenão voltou para Itapetininga depois de 14 anos. Foi um dos primeiros moradores do bairro Belo Horizonte. “Moramos uns meses em cômodo improvisado coberto com uma lona de plástico. Um dia choveu muito forte e derrubou uma casa de madeira vizinha a nossa. Os amigos vieram no dia seguinte, ninguém acreditava. Meu pai era um homem de muita fé. Deus nos poupou! ”, relembra Lila.
Homem muito religioso, Morenão era devoto de Nossa Senhora Aparecida. “Ele tinha muita fé e um coração enorme que não cabia no peito, sempre disposto a ajudar as pessoas. Se alguém precisasse a qualquer hora, lá estava ele de prontidão”, diz Heloísa. “E também onde ele chegava não havia tristeza. Fazia verso de tudo, bonito de se ouvir”, completa a irmã.
Com o falecimento da esposa Maria Aparecida, em novembro de 1987, cuidou da família com muito zelo, amor e dedicação. O que poucas pessoas sabem é que Morenão era um excelente cozinheiro. “Suas especialidades eram o macarrão de frango, o pé-de-moleque e o arroz doce. Uma delícia”, diz Lila. Com orgulho, o genro José Carlos Soares da Silva conta que aprendeu alguns segredos culinários com o sogro. “No arroz doce ele usava apenas um copo de arroz, leite puro da fazenda e duas latas de leite condensado”, revela. Lila conta que “Quando eu chegava em casa, ele falava: ‘tenho uma coisa na panela’. Todos se deliciavam com as suas receitas, que ele escondia. Aí, íamos na lata de lixo e ‘descobríamos’ que tinha usado leite condensado”, ri.
Talento – Fã do programa “Viola Minha Viola” e das duplas Tonico e Tinoco e Tião Carreiro e Pardinho, entre outras, as filhas afirmam que o pai sempre fez o que gostava na vida: cantar. Morenão estava sempre cantando com “uma alegria contagiante”, diz Heloisa. “Na minha adolescência eu não gostava das músicas que ele gostava, sabe? Adorava as músicas em inglês e ele dizia que eu gostava de música de língua enrolada, que eu chorava e nem entendia o que eles estavam falando”, conta com bom humor Lila.
Morenão sempre se recusou a gravar, apesar da insistência dos amigos. O motivo, segundo suas filhas, ele nunca revelou, mas elas acreditam que devido a necessidade de dinheiro para a gravação e envolver outras pessoas, ele poderia ficar refém de empresários. Segundo elas, ele amava a liberdade de cantar.
Heloisa e Lila contam que os amigos sempre vinham buscá-lo. Entre eles, com mais frequência: Humaitá, João Moretti, Jonas de Campos, João Didério e João Davi. Sempre acompanhado na viola por Zé Martins, Abel da Viola ou Pedro Vieira. “Quando não tinha viola, fazia a capela mesmo. Claro, que fazia um charme, dizendo que talvez não desse, mas ele sabia da potência de sua voz e de seus versos”, contam as filhas.
José Carlos relembra que um dia Morenão foi convidado para participar de um desafio no Bom Retiro contra um dos melhores cururueiros daquele local. Segundo o genro no meio do improviso, o desafiador desistiu e saiu sem cumprimentar Morenão. Durante toda a sua trajetória artística carregou “a fama de imbatível”, segundo Bob Vieira.
Infelizmente no dia 1º de fevereiro de 2002 sofreu um AVC em sua casa falecendo doze dias depois. “Eu desisti de ir a um baile com minhas amigas. Senti um aperto no coração. Voltei para casa e ele estava caído com o leite que ele estava esquentando derramado pelo chão. Ele me disse ‘sujei a casa’. Corri com ele para o hospital. Ele faleceu em uma quarta-feira de cinzas, no dia 13”, recorda Lila.
Morenão foi um gênio no “combate poético”, ao lado de Zé Correia. Um homem que lutou contra todas as dificuldades do cotidiano, mas que celebrou como poucos, através de sua arte o prazer e a beleza da vida.
ENTREVISTA HISTÓRICA
Em 1997, Bob Vieira entrevistou Morenão. Essa histórica matéria foi publicada originalmente no “Epidemia” nº 24. Gentilmente o autor e José Cláudio “Batatinha” (editor do texto) cederam este material ao “Correio” que reproduzimos praticamente na íntegra.
Bob – Quando o senhor começou a cantar Cururu?
Morenão – Comecei a cantar com 12 anos de idade, observando os outros, assistindo a cantoria do meu pai, eu já cantava de forma simples e comecei a cantar em frente ao altar, fazendo as louvações onde eu passava a noite inteirinha, fazendo os versos.
Bob – O senhor estudou música?
Morenão – Estudei um pouco de música com um padrinho, para cantar as toadas, mas, o Cururu para mim é como um Dom, pois eu desde criança tinha facilidade para cantar.
Bob – É difícil cantar o Cururu?
Morenão – Depende do modo como se canta. Existe o modo mais antigo que é mais simples, mas agora as rimas são cantadas em tempos dobrados, como dois dobrados, três dobrados, conforme a toada que a pessoa quer fazer. Alguns cantadores se atrapalham com mais dobrados, mas outros se saem bem, como por exemplo o Horácio Neto que canta em três dobrados, que é uma beleza, uma fortaleza. Eu canto também desta forma, mas tem que se ter sobra de verso para não se apertar (facilidade).
Bob – Quais são as carreiras (rimas) mais usadas?
Morenão – Em primeiro lugar a rima de São João, depois a rima do Sagrado, a rima do Á, rima do Ano, conforme o pedestre que é o que canta em primeiro, puxar a rima que deseja, podendo puxar a rima de São João e depois puxar a linha do Presumido, linha do Senhor Deus, linha rima do Í, rima do ABC, rima do Navio, etc.
Bob – Quais os instrumentos para acompanhar o Cururu?
Morenão – Antigamente o Cururu era acompanhado pela, viola caipira, pandeiro e reco-reco, sendo o forte atualmente somente a viola caipira, apesar de ainda hoje alguns cantadores de Piracicaba usarem todos os instrumentos que citei.
Bob – O senhor poderia citar alguns cururueiros famosos de Itapetininga e região?
Morenão – De Itapetininga eu me lembro do Zé Correia que trabalhava de bucheiro, gostava de cantar, manobrava tudo (agitava eventos) e era muito bom. Também havia o Dito João, que ficou 20 anos sem cantar, até que o João de Deus do bairro Cercadinho, me disse que o Dito João gostaria de voltar a cantar, mas só se fosse comigo. Então cantamos junto e foi um cururu muito especial, pois ele cantava bem e algumas pessoas que assistiram até choraram. Na cidade de Cerquilho tem um cantador muito bom, e um grande amigo que só canta em cima das Escrituras (temas bíblicos), carreira do Divino, modas. O seu nome é Luisinho Rosa.
Bob – Quais as cidades e bairros que o senhor já se apresentou?
Morenão – Em Sorocaba, em Tatuí, Guiarei, São Paulo, Paranapanema, Capão Bonito, Olímpia (no festival do folclore) e em bairros como Biscoito Duro, Cercadinho, Congonhas, quadra Juca Preto, Vitória, etc. Sempre se apresentando nas festas, igrejas, sítios, feiras livres e outros lugares.
Bob – O povo dá valor ao Cururu e seus cantadores?
Morenão – Sim, claro. O povo dá muito valor a tudo o que se relaciona ao Cururu.
Bob – Que tipo de cururu o povo gosta de ouvir?
Morenão – O pessoal gosta do Cururu que tem que rebater, quando vem em forma de sarro, calúnia, etc…
Bob – O senhor tem alguma reclamação a fazer?
Morenão – O que eu e bastante gente reclama, é o fim da música na feira aos Domingos de manhã na feira livre aqui em Itapetininga. Foi uma pena acabar, pois as pessoas que se reuniam em frente ao palco para assistir se divertiam muito e até os feirantes largavam as bancas para dar uma espiada no show.
Nota – O termino da música na Feira que Morenão se refere é o “SOS Viola Caipira”. “Foi realizado durante uns seis meses. A gente arranjada patrocínio pro som e dava até um cachezinho pros violeiros e cururueiros. Depois de um tempo, então o Pedraco começou a fazer na feira um encontro de cantores que ele chamava “Festa na Varanda”, explica Bob Vieira.