Ontem, 7, completou 69 anos da morte de um dos poetas itapetininganos, Abílio Soares, verdadeiro nome do famoso Nhô Bentico. Abílio foi um dos artistas mais conhecidos da cidade na primeira metade do século XX. Itapetiningano, nascido em 31 de agosto de 1899, morou praticamente toda sua vida em sua terra natal, tornando-se um ídolo em boa parte da região sul do Estado devido ao programa radiofônico matinal que comandava pela rádio PRD-9.
Filho de um negociante varejista, João Manuel Soares e de D. Ana Francisca da Silva, seu nome de batismo seria Abílio Soares. O Victor (na ortografia antiga) com o qual assinava, conforme explicou ao professor Manoel Cerqueira Leite, vinha do pai que era conhecido na cidade como “João Vitó”, de Vitó transformou em Victor.
Suas biografias apontam que começou a trabalhar no ofício de carpinteiro. Depois procurou Camilo Lelis e começou a compor tipos. Trabalhou nas três tipográficas existentes na cidade. Foi proprietário de um jornal em Angatuba, porém adversidades financeiras o fizeram devolver a gráfica. Depois, voltou a trabalhar com Lelis no jornal “O Democrata”, onde escrevia uma coluna chamada “A Tarefa”. Também colaborou com os jornais: “O Ideal”, de Píndaro Brisola, e “Tribuna Popular”, de Galvão Junior.
Sua passagem pelos principais jornais da cidade mostram um profissional que aprendeu seu ofício e foi além, tornando-se um “tipógrafo-compositor”, segundo Cerqueira Leite. Para o professor que fez o prefácio de seu primeiro livro, “Folhas do Mato”, Abílio “compunha tipograficamente todos os seus folhetos de propaganda e seus livros de versos”, escreveu.
Um ator popular – o que chama a atenção para quem lê a biografia do poeta é o pouco destaque dado a sua iniciação teatral, fundamental nos anos de composição da personagem Nhô Bentico. Em 1980, o jornal “Folha de Itapetininga” fala que na sua infância, Abílio desempenhava entre os colegas diversos personagens e que tinha adoração pelos palhaços circenses. Fora isto, há poucas citações (ou registros) sobre sua atuação nos tablados da cidade ou por outros locais. No livro “É Inacreditive! ”, editado em 1920, pela Tipografia Tribuna, felizmente o autor Dimas de Lima compila críticas da imprensa sobre seu teatro de revista. Entre elogios e considerações, o jornal “O Democrata” elogia Rivadavia Guimarães e Abílio Victor: “deram vivo destaque às suas partes, pelo que receberam muitos aplausos”. O correspondente do “Correio Paulistano” dá grande destaque a Abílio: “As honras da noite, com muita justiça, couberam especialmente ao amador Abílio Soares que, como compadre caipira, conseguiu trazer o público em constante hilaridade. Pena é que esse esperançoso jovem não vá mostrar nas plateias das grandes cidades a naturalidade e graça com que trabalha nesse gênero, aliás bem difícil”.
Com os poucos documentos encontrados, fica difícil identificar quantos trabalhos Abílio participou, mas eles foram fundamentais no desenvolvimento das suas potencialidades como comunicador e, futuramente, como autor. Sabemos que participou do Grêmio Dramático João Libânio, grupo teatral mais importante de Itapetininga na década de 1920. Comenta Cerqueira Leite: “Eu mesmo, ainda meninote, por volta de 1923, o vi representar, em Itapetininga, numa comédia de fundo ro¬ceiro”, diz o professor que o elogiava como um cômico divertidíssimo. “Em 1928, percorreu o Estado de São Paulo, num conjunto de atores, aplaudido sempre, por muitas plateias”, relata. Não sabemos precisamente qual era essa companhia e qual o repertório, mas provavelmente Abílio era o tipo cômico. Embora não ti¬vesse grandes estudos, teve acesso aos textos teatrais e com certeza, foi um bom observador dos ensaios e apresentações.
Em outro relato, Cerqueira Leite nos permite conhecer mais uma faceta do artista. Abílio com suas habilidades de ventríloquo e prestidigitador, fazia a alegria da criançada com seu teatro de títeres e seu popular João Minhoca, confeccionados por ele mesmo. “Em Sarapuí assisti à representação de uma de uma de suas peças. E lembro-me, bem, de que, num dado momento, havia uma tourada, em que um negro, o Bastião toureiro, saía correndo, com o touro a rustir-lhe os fundilhos”, escreveu.
Outra influência que pode ter contribuído com a sua sensibilidade artística foram os filmes do cinema mudo, possivelmente assistiu os grandes comediantes estadunidenses: Buster Keaton, Harold Lloyd e Chaplin. Artistas que dominavam como poucos, a arte da pantomina.
Enfim, a popularidade – Em 1941, com início das transmissões da Rádio Difusora de Itapetininga, a famosa PRD-9, há uma significativa mudança no comportamento da sociedade itapetiningana. A rádio passa a ser o polo cultural da cidade.
Levado pelo locutor Pedro José de Camargo, entrou na PRD-9 pouco tempo depois de sua inauguração. Inicialmente participou do “Programa da Saudade”, quando o proprietário Bartholomeu Rossi percebeu a sua imensa comunicabilidade junto aos ouvintes, surgiu “Manhãs da Minha Terra”, programa comandado por Abílio que ia ao ar, de segunda à sábado, às 9h da manhã: “notável criação do embaixador dos caipiras paulistas junto à Emissora do Sul”, destacava a imprensa da época.
O principal programa da emissora, com músicas regionais, tinha seu grande momento ao final, quando Nhô Bentico declamava uma poesia de sua autoria. “Ao ouvi-lo declamar com tanto sentimento, nos pare¬cia estar assistindo uma peça teatral, ou mesmo sermos nós os personagens da história”, escreveu o amigo Mário Paques.
Nhô Bentico era muito querido por todas as faixas etárias. A professora aposentada Maria Nívea Guarnieri Machado recorda-se que todos os dias esperava o poeta passar em frente à sua casa, na rua José Bonifácio, em direção a PRD-9. “Sempre acordava antes das 8h. para esperá-lo, tinha mais ou menos uns 5 anos. Ele era uma figura magra, alta, meio trôpego apoiado numa bengala. Vestia-se sempre um terno caqui, claro, chapéu tipo ‘palheta’, cabelos crespos, meio grisalhos e compridos, barba comprida”. E completa: “Nunca conversei com ele, às vezes, carinhosamente, ele batia de leve na minha cabeça com sua clássica bengala”.
O relato da professora Nívea mostra um artista em sua plenitude artística. Como poeta, Abílio já havia alcançado o domínio da poesia dialetal, basta ler “Pitoco” ou “Juão Paiáço”, publicados em 1939, no livro “Folhas do Mato”, publicação que teve enorme repercussão em todo o Estado, e o seu segundo e último livro, “Favas de Ingá”, editado em 1950. Mas, é a partir de seus programas radiofônicos que atinge seu auge como artista: poeta, ensaiador e ator, e constrói intuitivamente, um personagem único, marcante que atravessa décadas: Nhô Bentico com seu linguajar característico, “figurinos” e o uso de uma bengala, que tinha uma função cênica – até onde pudemos apurar, não possuía nenhuma limitação física.
Paralelamente comandou à noite, o programa de sucesso: “Aventuras de Nhô Bentico”, muitas vezes seriado. Abílio escrevia semanalmente e ensaiava com seu grupo. “O texto do programa era escrito pouco an¬tes do horário, em papel de embru¬lho, geralmente no bar do Garcia, na esquina da José Bonifácio com a Saldanha Marinho. In¬felizmente o texto ia para o lixo após o pro¬grama”, lamenta Nívea Guarnieri.
Provavelmente, as lembranças circenses de sua infância e sua participação em peças teatrais, o fez aprender muito da carpintaria teatral e a especialização da máscara, herança da commedia dell´arte. O Nhô Bentico dessas aventuras era um muito próximo de clown denominado “augusto” carregado de simplicidade, dinâmico e cômico, que tinha na complementaridade o clown “branco”, representado por Pedro José, como o astuto fazendeiro. Outra personagem cômica desse programa era Nha Tuca (Conceição Martins Castro e, depois, Elizabeth Marques).
Fãs de lugares distantes iam visitá-lo na rádio. No livro “Um Adeus a Cada Esquina”, Hehil Abuázar escreveu sobre um episódio ocorrido na PRD-9: “Uma vez veio de Guapiara uma família só para vê-lo. O Bartholomeu Rossi mandou chamar nhô Bentico. Espera que espe¬ra, e não aparece. (…) o Bartolino, foi ver o que se passava. Estava largado, bêbedo que só vendo o famoso poeta. Repreendeu-o seve¬ramente, e deu-lhe conselhos. Passou a beber só à noite, não mais em horas de serviço”.
Boêmia – Seu talento aliado com o crescimento da audiência da rádio, o torna a maior estrela da região. “Era um poeta inspirado e um boêmio incorrigível. Entre um gole de pinga e uma tragada de cigarro, escrevia um poeta”, relembrava o amigo Pedro José ao jornal “Folha de Itapetininga”, em 1971.
Antônio Antunes Alves reconhecia Abílio como um poeta nato, cuja a poesia seduzia e encantava. “Abílio Victor foi o bom poeta caboclo, em extensão da palavra: inspirado, sonhador e boêmio”, finalizava. A boêmia sempre lhe causou fascínio, perambulava pelas noites itapetininganas declamando seus versos na companhia de amigos.
Além das poesias que compunha a luz de um lampião e lia em voz alta para os seus filhos, como revelou a viúva Benedita Soares ao jornalista Alberto Isaac, em uma entrevista 1968, Abílio tinha um raro talento para criar comerciais. “I um tar de Juca Pato, vem correndo lá do mato, fazendo um bruto espaiafato, prá tomá Itapecola que é gostoso i é barato”, como relembra Francisco Tambelli Neto, no livro “Itapetininga em Foco”, sobre uma propaganda criada pelo poeta para uma marca de refrigerante de seu pai.
Faleceu em 1952, com 53 anos de idade, seu enterro teve um acompanhamento popular jamais visto na cidade. O cortejo saiu da emissora, localizada na rua Quintino Bocaiuva, próximo a igreja do Rosário, e foi acompanhado por automóveis, caminhões, carroças e pedestres, desceu a avenida Peixoto Gomide, seguindo pela rua Padre Albuquerque até o cemitério São João Batista. “Contam que quando o séquito estava entrando no cemitério, a massa popular não havia terminado de deixar a frente da PRD-9”. Ao calcularmos este trajeto, com aproximadamente 4 km, e considerarmos as ruas com uma largura média de 5 metros de largura e uma pessoa por m², tivemos 20 mil pessoas no enterro!
Em 1980, devido ao empenho de Nívea Guarnieri, Paulo Guarnieri de Lara, Virgílio Lírio Talarico, Vivaldo Bordinhão, Marino Palombo, José Carlos Silva Sanches e Paulo Rubens Soares Hungria os livros de Abílio Victor foram reunidos em “Poemas Sertanejos”, tirando do ostracismo os poemas de Abílio Victor e os preservando para futuras gerações. O valor arrecadado com as vendas ajudou a viúva do poeta “comprar as partes da casa de seus filhos e reformá-la. Mas outras pessoas ajudaram bastante sua família, entre eles, eu citaria dr. Bento de Lara que conseguiu a casa na Bernardino de Campos para eles, quando Nhô Bentico era vivo e estava bem doente”, conta Nívea.
O itapetiningano Abílio Victor, o popular Nhô Bentico, teve diversas oportunidades de trabalhar em emissoras paulistanas, porém sempre recusou. “Eu não deixo minha terra; aqui nasci e aqui quero morrer” falava aos amigos. Cabe as atuais gerações divulgar sua obra, de um maiores poetas… não! De um dos maiores artistas de nossa terra.