Texto e fotos: Donizete Oliveira.
“Vá buscar os homens para o julgamento”, ordenou o então prefeito de Mandaguaçu Hilton Antunes Mendes (1965/1968) a Arnaldo Mayer Rocco, na época, motorista da prefeitura. Ele tremeu, mas não podia dizer não. Acompanhado de três policiais, partiu, de Kombi, rumo a Maringá, onde estavam presos Geraldo Fonseca de Souza, o “Diabo Loiro”, e Luiz Fernandes, o “Carne Seca”.
O desenrolar da viagem de Rocco a Maringá está nas linhas a seguir. Ele buscou a dupla de bandoleiros para julgamento em Mandaguaçu (a 10 quilômetros de Maringá), em 1968. Eles foram julgados e condenados a 30 anos de prisão, entre outros crimes, pela morte de uma enfermeira no Hospital São Lourenço, naquela cidade, em 1953.
Mas a ficha criminal da dupla, a julgar pelos depoimentos e notícias que circulavam na época, era extensa. A revista Estampa, de Maringá, em abril de 1958, dedicou três páginas à prisão de “Carne Seca” e “Diabo Loiro”.
A reportagem, “Quadrilha de perigosos bandoleiros desbaratada no norte do Paraná”, do jornalista João Antônio Correa Júnior, o Zitão, descreve a operação policial comandada pelo delegado Miranda de Assy, da Delegacia de Capturas, de Curitiba, que os prendeu em Bela Vista do Paraíso.
Igual Lampião
Não é exagero comparar a quadrilha liderada por “Diabo Loiro” e “Carne Seca” ao bando de Lampião, que por muitos anos aterrorizou estados do Nordeste. Na maioria das vezes, eles agiam em bandos e praticavam diversos crimes.
Estudante estuprada e morta em São Jorge do Ivaí, comerciante brutalmente assassinado em Jussara, assaltos em Mandaguari, Astorga, Arapongas e Apucarana, relatava a revista Estampa.
Com a prisão, a quadrilha confessou 360 crimes, incluindo homicídios, roubos, golpes e assaltos em cidades do norte e noroeste do Paraná, que teriam rendido 10 milhões de cruzeiros, segundo a polícia, na época.
Um dos crimes que mais repercutiram foi a morte de uma enfermeira do Hospital São Lourenço, de Mandaguaçu, em 1953. Quem conta é o radialista aposentado João Pereira da Silva, 83, que chegou àquele município em 1948. A mulher dele, Maria da Conceição Silva, com uma crise de apendicite, estava internada no mesmo hospital na noite do crime.
Pereira deparou com “Carne Seca” no corredor do hospital, cuja mulher também estava internada. Ele o conhecia. “Carne Seca” o visitara algumas vezes no sítio para vender catuaba em litro. Dizia que era estimulante sexual. “A turma comprava achando que ia dar resultado”, conta o radialista. “Mas era tudo enganação.”
Marteladas
À noite, apenas uma enfermeira ficava de plantão. No outro dia pela manhã, encontraram o corpo dela em uma sala no porão do hospital. Estuprada e morta a marteladas. “Eu não vi nem ouvi nada porque passei a noite no quarto cuidando da minha mulher”, lembra Pereira. Mas a polícia atribuiu o crime a “Carne Seca”. Preso em 1958, ele teria confessado o assassinato, pelo qual foi julgado com “Diabo Loiro”.
Na época, o medo rondava a região. Meses depois, outra moça teria sido morta nas mesmas circunstâncias em uma loja de Mandaguaçu. Ela morava no sítio e dormia no local. Havia sinais de arrombamento na porta do estabelecimento. “Os moradores especulavam quem seria a próxima vítima”, afirma Pereira.
O professor Ben-Hur Marques Boska, 65, diz que após esses crimes os moradores começaram a comprar tábuas numa serraria da cidade para reforçar portas e janelas. “De tanta procura acabou o estoque”, afirma. Os que não reforçavam a porta colocavam panelas de cozinha encostadas nela pelo lado de dentro. “Se alguém arrebentasse, o morador acordava com o barulho.”
Não faltava ousadia ao bando de “Diabo Loiro” e “Carne Seca”. A reportagem da revista Estampa diz que a quadrilha roubara um jipe em Arapongas e o abandonara a poucos quilômetros do local com um bilhetinho no para-brisa: “Consertem os freios, que voltaremos para buscar esse jipinho”.
Prisão
Segundo a revista Estampa, os agentes comandados pelo delegado Miranda chegaram a Mandaguaçu em 7 de março de 1958 para investigar uma série de arrombamentos que ocorrera na cidade e região. Um dos crimes fora contra uma menina de 13 anos. Violentada e estuprada, ela permanecera em coma por vários dias.
O então delegado de Mandaguaçu, Rodolfo Uhdre, pediu ajuda ao Governo do Estado, que enviou a força especial ao município. Após vários dias em patrulha pela região, a equipe prendeu Augusto Vizoni, o Angelim. Motorista do bando, ele delatou “Carne Seca” e “Diabo Loiro”.
A polícia os surpreendeu em uma casa em Bela Vista do Paraíso – município próximo a Londrina. Segundo a reportagem da Estampa, foram presos sem disparar tiros. A revista revela também que “Diabo Loiro” cumprira pena no presídio da Ilha Anchieta, em Ubatuba (SP), que abrigava bandidos perigosos. Ele teria fugido durante uma rebelião, em 1952, e vindo para o Paraná.
Amizades
O radialista Rogério Ricco, que por mais de 20 anos apresentou um programa policial em Maringá, afirma que “Carne Seca” e “Diabo Loiro” não se mostravam bandidos. Eles mantinham boa relação com vizinhos e tinham amigos em Mandaguaçu e Maringá.
“Carne Seca” seria dono de um açougue na saída de Mandaguaçu para Paranavaí. Daí seu apelido. “Não os conheci, mas conversei com pessoas que conviveram com eles”, afirma o radialista. Para ele, a dupla se tornou uma lenda dos casos policiais. “Embora fossem bandidos, inventava-se muito a respeito deles.”
O ex-deputado estadual Arleir Ferrari Júnior, que por muitos anos foi radialista em Maringá e hoje vive em Camboriú (SC), também se lembra da dupla. “No fim dos anos 70, o ‘Diabo Loiro’ esteve no meu programa na Rádio Cultura”, recorda-se.
Ferrari conta que ele estava com a mulher, que carregava o filho do casal no colo. Havia saído da prisão e, sem dinheiro, queria uma passagem de ônibus para o Mato Grosso, onde pretendia morar. O radialista arrumou a passagem e nunca mais soube dele.
A “lista tenebrosa”
Na reportagem da prisão de “Diabo Loiro” e “Carne Seca”, em 1958, a revista Estampa, de Maringá, publicou a “lista tenebrosa”, que trazia os nomes dos componentes da quadrilha liderada pela dupla:
Luiz Fernandes (Carne Seca), Geraldo Fonseca de Souza (Diabo Loiro), Sebastião Olindo de Oliveira (Bastião Branco), José Alarcão (Diogo), Reinaldo de Carvalho (Cabeça Branca), João Oliveira (Joãozinho Cozinheiro), Ernesto Galhardo Queiroz (Galhardo), Maria Benedita Moreira (Dona Ditinha), Aladir Alves Oliveira (Filha da Ditinha), Antonio Vicentino (Antônio Velho), Sebastião Fidelis (Bastião Careca), Antônia Tolêncio, Bertolino Bispo dos Santos, Sebastião de Souza Pereira (Bastião Minhoca), Expedito José da Silva (Caxambu), José Tiago Fernandes (Zé Tiago), Augusto Vizoni (Angelim), João Rosa (Anjinho), José Vitório dos Santos (Zezinho), Dino de Tal, Miguel Gomes Batista (Bastião Preto ou Bastião Louco), João Alarcão Filho, Luiz Frangueiro, Elizabete Trindade, Abdala Saddi, Odair José da Silva e Geraldo José de Paula (Bocage).
Dupla pagou jantar ao júri
O ex-vereador e atual chefe de gabinete da Prefeitura de Mandaguaçu, Arnaldo Mayer Rocco, 67, na época, motorista da prefeitura, a pedido do então prefeito Hilton Antunes Mendes, foi à cadeia de Maringá buscar “Diabo Loiro” e “Carne Seca” para o júri, em Mandaguaçu. Condenados a 30 anos de prisão, foram transferidos para a Penitenciária Central do Estado, em Curitiba.
O julgamento atraiu gente de várias cidades, que se concentrou em frente ao Fórum de Mandaguaçu para ver o destino dos acusados. Incumbido pelo prefeito a ir buscá-los, Rocco tremeu. “E se eles me reconhecerem?”, pensou. Para evitar, virou o retrovisor interno da Kombi.
Acompanhado de três policiais, ele chegou à cadeia e logo surgiram os dois algemados. Mas o diabo não era tão feio. Eles puxaram conversa com Rocco e vieram batendo papo até Mandaguaçu. Disseram que nunca haviam matado ninguém, apenas tomavam dinheiro de quem vinha comprar terra em Maringá.
Eles permaneciam ao redor da antiga rodoviária, na Praça Napoleão Moreira da Silva. Ao detectarem algum visitante desavisado, levavam-no a um lugar afastado com desculpa de que iam lhe mostrar um terreno. Davam-lhe uma gravata e tomavam o dinheiro. Naquela época, a maioria andava com dinheiro em espécie na mala ou no bolso.
Segundo Rocco, ambos se mostraram tranquilo no julgamento. “Carne Seca” lhe pediu que chamasse a filha dele, que morava em Mandaguaçu. Queria vê-la após a decisão do júri. Mas o genro não permitiu. “Transmiti o recado, e ele ficou furioso, mas logo se acalmou”, conta.
Na volta para Maringá, de onde seriam transferidos para Curitiba, eles pagaram um jantar em um restaurante que havia em Iguatemi para os policiais e as pessoas envolvidas no júri. Sem algemas conversaram amistosamente com policiais e funcionários do Fórum. “Não pareciam os bandidos que tinham aquela fama”, afirma Rocco.
Informação e polícia melhor equipada põem fim às lendas
Hoje não é possível surgir bandidos perenes, que desafiam a polícia por longos anos, sem ir presos, transformando-se em lenda dos casos policiais. A opinião é do delegado Reginaldo Caetano da Silva, 50, da delegacia de Sarandi.
Silva explica que a facilidade de comunicação e a estrutura da polícia não permitem um mesmo grupo de bandidos impune por vários anos. “Antigamente, a pessoa cometia um crime em Maringá e fugia para Mandaguari, por exemplo, pronto, ninguém mais a via”, afirma. “A comunicação era precária.”
Para o delegado, a comunicação rápida facilita o trabalho da polícia. Ele diz que com a internet é possível pesquisar em tempo real. “A imprensa também nos ajuda divulgando fotos e informações de criminosos”, declara.
A polícia, em maior número e melhor equipada, se soma às estratégias de combate. “Em se tratando de armamento e homens preparados, não há dúvidas de que evoluímos”, diz o delegado, acrescentando que esses fatores impedem a criação de lendas no mundo do crime.
Confira mais fotos em: http://www.portalagora.com/galeria#prettyPhoto[dos-arquivos-policiais-diabo-loiro-e-carne-seca-a-lenda-do-crime]/0/
*Reportagem publicada na 73ª edição do Jornal Agora.