Provavelmente, os moradores da rua José Ferreira da Silva desconhecem que aquela via localizada na Vila Piedade presta uma homenagem para um dos maiores comunicadores que Itapetininga já teve, que ficou conhecido pelo nome artístico de Ferreira Neto. Ele, juntamente à sua esposa Célia Prestes da Silva, foram responsáveis por importantes montagens teatrais na distante década de 1950, os memoráveis bailes no Clube Recreativo Itapetiningano (CRI), entre outras atividades artísticas.
A história do casal lembra uma produção cinematográfica hollywoodiana. Tudo teve início na década de 1940 na cidade de Assis (SP). Impactado pelas apresentações de uma companhia circense, o jovem Ferreira Neto resolveu abandonar seus estudos no seminário, um desejo paterno, e seguir com a trupe por destinos desconhecidos. Na trajetória mambembe, entre grandes cidades e vilarejos do interior, a companhia realizou uma temporada em Itapetininga – lugar que mudaria o destino de duas pessoas para sempre.
A itapetiningana Célia Prestes foi assistir à estreia do circo e ficou encantada com o jovem cantor e narrador assisense. “Ela contava que ia em todas as sessões ver o cantor”, conta Juceli Maria da Silva Obayashi, uma das filhas do casal. Logo após sua última apresentação na cidade, a companhia iniciou o seu processo de desmontagem. E o destino fez sua interferência.
Durante a desmontagem, Ferreira Neto sofreu um acidente. Ao lançar uma mala para dentro do caminhão, ele lesionou a coluna, necessitando de cuidados médicos imediatos. “Como a companhia tinha outro compromisso, eles tiveram de partir. Meu pai ficou na cidade e, assim que estivesse recuperado, iria encontrá-los na próxima cidade”, explica Célia Maria Prestes da Silva Monteiro, outra filha do casal. Porém, Ferreira Neto jamais retornaria ao picadeiro.
Com a permanência do jovem artista em Itapetininga, os dois se aproximaram e se apaixonaram. Só havia um problema: Célia estava comprometida. “Na época, o rapaz estava em combate durante a Segunda Guerra Mundial. Ela explicou a situação para o meu avô, Manaces Prestes. Ele a aconselhou que escrevesse uma carta, se o rapaz concordasse em romper o compromisso, minha mãe poderia namorar meu pai. O soldado entendeu a situação e rompeu o compromisso através de uma carta”, conta Juceli. Livre do compromisso, Célia casou-se com Ferreira Neto em 29 de junho de 1946.
Manaces arrumou um emprego para o genro com o diretor da rádio PRD-9, Bartholomeu Rossi. “Polivalente, ele abria o local, depois apresentava o tradicional noticiário do meio-dia e, no final do dia, fechava o estabelecimento. Porém, o salário não era suficiente. Começou a trabalhar como alfaiate e, anos depois, trabalhou na Sorocabana”, relata a filha Célia.
Veia Artística – O casal sempre se destacou na cena cultural da cidade. As filhas contam que o pai era um excelente cantor, muito solicitado em diversos lugares. “Inclusive numa orquestra de Santos. Ele se vestia de forma impecável com seu terno de linho branco. Na cidade, papai se apresentava no coral da Igreja das Estrelas, na Orquestra “Cruzeiro do Sul” regida por Caetano Ianaconi e cantava ao lado de musicistas fantásticas como Dona Hebe Villaça e Angelina Ragazzi”, recorda Juceli.
Sua esposa era apaixonada pelo universo artístico. Formada pela Escola de Comércio, seu interesse pelo universo teatral ocorreu aos doze anos de idade. Em 1940, ela fez sua estreia no palco do Cineteatro São José, convidada pelo ensaiador Humberto Pellegrini. Segundo revelou em uma entrevista a José Maria de Abreu, em 1985, como atriz ela atuou em dez peças da companhia de Pellegrini. Depois trabalhou como “ponto”.
Na função de “ponto”, passou a integrar o grupo teatral da escola Peixoto Gomide liderado pelo professor de português Francisco Borba da Silva. Ela trabalhou no estúdio da PRD-9 como “rádio-atriz”. Com o nome artístico de Celia Maria participou do memorável programa “Cortina de Veludo”, comandado inicialmente por Ayres de Souza e depois pelo casal Celso Antônio e Geralda da Silva Araújo.
As filhas lembram que a mãe era uma excelente dançarina. Sempre contava com orgulho que foi a primeira itapetiningana a dançar com o cantor Francisco Petrônio, conhecido como “a voz de veludo do Brasil” e intérprete da memorável canção “Baile da Saudade”. “Mamãe dançava muitíssimo bem. Na primeira vez que Petrônio se apresentou no Clube Venâncio Ayres, ele desceu do palco e convidou uma dama para acompanhá-lo na valsa, e ela aceitou. Foi um sucesso! Mamãe guardou o chapéu de palha desse dia memorável. Até hoje a família guarda esse souvenir”, recorda Célia Monteiro.
O Teatro – Com 65 anos de profissão, o radialista Luiz Honório de Oliveira, conhecido como Filisbino, não deixa de agradecer a Ferreira Neto e a Celia Maria sua aprendizagem no palco do Clube Recreativo, o CRI. Filisbino começou no teatro com o casal na década de 1950 – posteriormente trabalhou no circo.
“Na época era comum os músicos, como Zé Fortuna & Pitangueira, ao se apresentarem no circo, realizarem na primeira parte uma apresentação teatral e depois o show. Levei essa ideia nas minhas viagens pelo Brasil. Escrevi duas ou três peças. A de maior sucesso foi ‘Tonho Mata e Filisbino Enterra’, que apresentamos antes do show do trio Zaraponga da Terra. Mas o alicerce de tudo que aprendi no teatro (a produção, a direção, a atuação) devo ao casal Ferreira Neto e Célia Maria, expoentes do nosso teatro”, comenta.
“Ferreira Neto foi um saudoso colega de teatro, de rádio, de muitas coisas nessa vida. Amante do teatro, ostentava com galhardia sua paixão. Ele dirigiu o teatro do CRI por muitos anos. Antes de eu começar na rádio, ainda criança, fiquei deslumbrado com o teatro. Foi o teatro que me trouxe para a rádio e que despertou minha vocação. Portanto, meu início foram minhas participações teatrais no CRI ao ser dirigido por ele e também pela sua esposa, que estava sempre envolvida na produção, naquele contexto todo. Ele achava que eu tinha o dom teatral. Eu tinha vontade. Via o pessoal se arrumando, todos bonitões. Pensei: aqui que eu vou. Isso em 1955, se não me engano. Foram muitas peças, que coisa linda, preciosa, porque aprendi muito. Com eles aprendi a importância dos ensaios. Suas correções eram sistemáticas. Eles buscavam a primazia em levar as coisas em cima da risca como mandava o texto”, relembra.
No poema “Meus Velhos Companheiros”, publicado na edição ampliada “Coisas do Sertão – Poemas Sertanejos”, Filisbino demonstra seu apreço ao amigo. “Outro radialista e ferroviário / Sempre cumpriu meu horário/ Substituindo em minhas andanças, / Pouca prosa um amigo quieto / Saudoso locutor Ferreira Neto / Ainda vive em minhas lembranças, / No rádio um verdadeiro coringa / Fez de tudo nesta Itapetininga / Engrandecendo sempre o rádio, / Foi destemido e grande locutor / Trabalhando sempre com amor / Ferreira Neto é sempre lembrado”, escreveu.
Recentemente, o radialista lembrou-se, em seu programa matinal, de uma história pitoresca, ocorrida em 1968, envolvendo os saudosos amigos Ferreira Neto e Carlos José de Oliveira durante o sepultamento de Pedro Correa Franco. “Naquele ano perdemos Pedro Franco. Um grande locutor, radialista, comunicador, um dos melhores que tivemos na nossa equipe de profissionais da rádio [Difusora PRD-9]. No dia do sepultamento, ao lado da cova, todo mundo muito triste, lógico, pela perda de um companheiro que havia nos deixado. Todo mundo emocionado e ninguém tinha voz, não tinha como, pois a tristeza imperava. O Ferreira Neto se embreou a fazer um discurso, uma fala de despedida: ‘Meus amigos nessa manhã em que estamos aqui no cemitério municipal onde será sepultado o nosso querido colega…’. Na hora ele esqueceu o nome e depois trocou pelo do Carlos José, que de imediato falou: ‘Opa, peraí pois eu estou aqui! ’”, conta com imensa saudade dos amigos.
Vida Social Intensa – Além do teatro, as filhas comentam que o casal gostava de organizar festas. Na segunda metade da década de 1950, Ferreira Neto fez parte do conselho do CRI. E, segundo as filhas, foi durante a gestão do presidente Eurico Aires Martins que o pai se tornou o diretor artístico e cultural do tradicional clube. Entre suas inúmeras contribuições, realizou o “Baile dos Alfaiates” e apresentações musicais, como da cantora Ângela Maria, um dos maiores sucessos do clube.
As irmãs contam que seus pais eram muito sociáveis. Ferreira Neto frequentava o icônico Bar Rodovia, “point” dos intelectuais da época. “Era o local em que ela realizava vários contatos”, explica a filha Célia. “Também recebíamos muitas pessoas em nossa casa. Com o falecimento de papai, a mamãe ficou muito abatida. Aliás, nós todos. Eu tinha dezessete anos na época. A ausência de meu pai fez muita falta na minha formação”, lamenta Juceli.
As irmãs reforçam que, apesar da intensa rotina, seus pais sempre prezaram pela união da família. “Ao lado dos meus outros irmãos, Benedito Augusto Prestes da Silva e da saudosa Zila Maria da Silva Nogueira, sempre fomos cercados de amor, cumplicidade e respeito. Tenho várias lembranças da infância, como quando morávamos no casarão do Salém”, finaliza Célia Monteiro. Com orgulho, elas afirmam que foram esses os valores que aprenderam junto aos pais e que deixaram de legado aos filhos e netos.
Um dos maiores sucessos do Nosso Teatro.
Ferreira Neto foi o diretor de um dos grandes sucessos do teatro itapetiningano na década de 1950, “Canário”, escrita por José Wanderley e Mário Lago. No elenco Edna Sansão, José Antônio Martins, Luiz Honório de Oliveira (Filisbino), Maria Irene Dias, Maria Lourdes Campos, Maria Mércia Lisbôa, Nilson Teixeira de Almeida (Fulgêncio), Maria de Souza e José Luiz Nogueira.
O pesquisador José Luiz Nogueira relembra que possuía um grupo de teatro na época, e nessa trupe participava a dupla Fulgêncio e Filisbino. “Um dia, conversando como seu Eurico Ayres Martins [Presidente do CRI na época], disse que gostaríamos de fazer uma apresentação no palco do clube. Ele autorizou e logo nos apresentamos ali”, explica Nogueira. Com o sucesso de público, surgiu a ideia de um voo maior.
O grupo convidou Maria de Souza, grande dama do teatro itapetiningano. “Ela convidou o Ferreira Neto. Começamos a ensaiar [a peça “Canário ou o Beijo que era Meu”] todas as noites no palco do Clube Recreativo. Chegamos a fazer uma carteirinha com o nome de Teatro Recreativo Itapetingano. A esposa do Ferreira, dona Célia, ficava no buraco do palco fazendo o ‘ponto’. Essa peça foi apresentada diversas vezes no palco do CRI e também uma vez em Sorocaba”, recorda Nogueira, que, posteriormente, em 1962, mudou-se para São Paulo e realizou apresentações na extinta TV Paulista.