Por: Thais Maria Souto
No decorrer dos meus 37 anos meu avô Sérgio Souto sempre foi uma figura muito presente, mas foi somente na faculdade de Ciências Sociais que eu compreendi a importância que ele teve na minha formação humana.
Meu avô nasceu e foi criado na região rural de Buri, adquirindo ali jeitos e costumes próprios da vida pobre na roça. Quando jovem veio para a cidade de Itapetininga. Trabalhou em várias funções. Foi funcionário do DER pintando estradas cidades afora, mas paralelamente foi desenvolvendo o ofício da Marcenaria e é com cheiro de madeira sendo talhada que a gente se recorda dele. Quando vejo as pessoas traçando sua árvore genealógica na busca de um antepassado europeu, não consigo ter memória dessa referência nas histórias do meu avô. Embora sejamos brancos e com um sobrenome comum na Espanha e Portugal, provavelmente nossa origem veio do que se classificou historicamente como “cristãos novos”, judeus expulsos da Espanha e que fizeram vida em Portugal. As histórias do meu avô remetem a um contexto originariamente caipira, o que se conhece culturalmente como a Cultura Caipira no seu sentido mais rico e pleno, vinda da junção do bandeirante de origem portuguesa, do índio colonizado e do africano escravizado que foi se espalhando pela “Paulistânia”. Essas coisas aprendi lendo o livro “Parceiros do Rio Bonito” de Antonio Candido e enxerguei minha família ali, me entendi caipira. Essa é minha porção de gente na formação do Povo brasileiro, agora citando o antropólogo Darcy Ribeiro.
Foi no entanto, quando li o texto “O Narrador”, do filósofo alemão Walter Benjamin que compreendi a riqueza que meu avô trazia nas palavras. Riqueza esta muitas vezes passando despercebida por todos e tal hábito visto ingenuamente como apenas uma atitude de agradar os netos.
Sempre quis registrar essas histórias e buscar suas origens, mas a verdade é que elas pertencem a uma tradição puramente oral. Meu avô não era letrado fluentemente. Estudou por pouco tempo. Sabia ler para as funcionalidades da vida diária, mas sua riqueza estava no contar. Por vezes fiquei pensando se aquelas histórias eram inventadas ou ele ouviu de alguém. Me lembro de uma em específico, sobre um viajante que parou num sítio para pedir comida e água e se depara com uma enorme miséria onde cada animal e objeto emitiam um som diferente fazendo referência a fome. A galinha d’angola gritava “tô fraco”, o moeiro de farinha rangia “semana inteira só pau” e assim por diante. Não gravei esses momentos. Quando a demência o pegou (e nos pegou) as memórias vinham bagunçadas e já sem a linearidade e riqueza de detalhes. Contava-se história de Sacy que trançava rabos de cavalo e a origem dos nomes das cidades de maneira cômica e inventiva.
Segundo Benjamin, o narrador é conhecedor de suas tradições e de certa forma tais histórias são maneiras também de dar conselhos. Hoje vivemos de forma bastante individualista e dar e ouvir conselhos se tornou algo dispensável numa vida tão voltada para si mesmo.
“O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.”
Eu sinto muito que não poderei mais ouvir as histórias do meu avô, mas sinto também que parte de uma cultura narrável de histórias antigas também se perdem um pouco com as novas gerações. Este texto escrito é uma forma de registrar e ser grata pelo que a cultura imaterial pode nos deixar como legado para quem conviveu com ela em vida: conselho e sabedoria.