Por: Milton Cardoso
Especial para o Jornal Correio
Em outubro, a marcante montagem itapetiningana “O Milagre de Annie Sullivan” completa 40 anos. Estima-se que o trabalho encenado por Margarida (Margha) Maria Bloes tenha sido assistido por mais de 15 mil pessoas em 16 récitas, provavelmente o maior recorde de público do teatro da cidade ao lado de “A Paixão de Cristo ao Vivo”, de 1972.
O drama inspirado na realidade foi escrito pelo estadunidense William Gibson. A peça narra o empenho da professora Anne Sullivan em cuidar de uma criança de 7 anos de idade, Hellen Keller, que ficou cega e surda quando tinha 18 meses. A relação inicial é muito conturbada, rompida paulatinamente pela determinação da educadora.
A primeira montagem brasileira foi apresentada no Teatro do SESI-SP em 1967. Com direção de Osmar Rodrigues Cruz, Helen Keller foi representada pela atriz Reny de Oliveira. O papel da professora ficou a cargo da atriz Berta Zemel, que ganhou, naquele ano, o prêmio Molière de melhor atriz. Em Itapetininga, Maria José Ruivo viveu Keller e Márcia Maria de Almeida Paula, Sullivan.
Outros jovens estudantes itapetininganos, em 1984, fizeram parte dessa memorável montagem: Aliane Prestes, Carla Araújo, Cristiane de Oliveira, Flávio Bartolomeu, Isa Prado, José Antonio Nogueira, José Antonio Soares, Lilian Tavernaro, Luciana de Araújo, Márcia Tavernaro, Maria Helena de Oliveira, Rinaldo Zaglobinski, Rubens de Oliveira, Sueli Soares e Terezinha Martins.
“Embora a programação cultural das Estrelas fosse das mais intensas, um departamento específico para a área ainda não estava institucionalizado. Para uma grande ideia não poderia faltar um grande projeto. E assim se fez. No dia 16 de outubro de 1984 acontece a estreia do espetáculo ‘O Milagre de Annie Sullivan’, que tem como atriz principal a jovem Maria José Ruivo, aluna surda-muda da Classe Especial de Deficientes Auditivos (…) interpretando Helen Keller (cega-surda-muda), e que traz também o talento de Márcia Maria de Almeida Paula na pele de Annie Sullivan”, escreveu José Luiz Ayres Holtz no livro “Da Cruz do Negro ao Brilho das Estrelas”.
Nas vésperas da estreia, uma equipe de reportagem da TV Globo liderada por Neide Duarte gravou uma matéria que foi veiculada no Jornal Nacional. Além de mostrar imagens do trabalho, é realizada uma homenagem ao Dia do Professor, destacando o trabalho “sui generis” da educadora Cecília Pimentel.
Margha dedicou uma singela homenagem ao trabalho de Cecília. “Muita da grandeza de servir está no desprendimento de quem o faz. Seu apoio foi uma eloquente lição para nós, do Grupo Théspis, que aprendemos a amá-la”, escreveu a diretora no final da temporada.
“O Milagre” torna-se como um “musée imaginaire” transformador de imediata e inolvidável experiência na trajetória dos produtores, dos atores e da cidade. A bem-sucedida montagem cativa a todos e provoca profícuas reflexões humanas e sociais. “Participar de um trabalho intenso como esse de um ano e oito meses foi de luta, muita luta para compreender o mundo da criança deficiente. Isso nos ensinou muita coisa, uma bagagem muito grande que nenhum dinheiro pode pagar”, declarou na estreia o saudoso ator José Antonio Soares, Capitão Keller na peça.
Como tudo começou – Em 1982, Margha, exercendo a função de coordenadora pedagógica da escola Fernando Prestes, acompanhou o trabalho da educadora Cecília Pimentel. “Na ocasião, [Cecília] tinha duas salas especiais. Em uma delas encontrei Maria José Ruivo. Aí foi onde tudo começou… por que não fazer uma criança surda-muda, Maria José, interpretar o papel de outra criança, esta cega-surda-muda, Helen Keller? ”, explicou certa vez Margha.
A alambariense Maria José Ruivo começou a frequentar as aulas da professora Cecília em 1976, quando estava com 6 anos de idade. Dedicada e perseverante, a estudante também se destacou nas aulas de artesanato.
“A Maria José sempre foi muito esperta”, relembra Márcia. Ela conheceu a atriz de Hellen Keller enquanto fazia estágio na escola Fernando Prestes. “Eu fazia o curso de magistério da Peixoto Gomide. A Margha me convidou a fazer estágio na sala da professora Cecília Pimentel. Foi ali que começou meu trabalho como Annie Sullivan”, pondera.
A primeira vez que Margha e Márcia trabalharam juntas foi em “Arlequim, Servidor de Dois Amos”. Em 1982, a encenadora, provavelmente de forma intuitiva, aproximou a dedicada e talentosa estudante do magistério ao trabalho de Cecília Pimentel. A pioneira educadora de educação especial na cidade deve ter inspirado Márcia na difícil composição cênica da personagem Annie.
No decorrer do processo de encenação, as talentosas Márcia e Maria José iniciaram um trabalho de “laboratório”, essencial para o sucesso da encenação. “A Margha me procurou dizendo que montaria a peça e que eu seria Annie Sullivan. Fiquei espantada, achei a princípio uma tremenda loucura, achava que não tinha bagagem para isso, mas topei. Acreditava nela”, conta.
Márcia e Maria José ficavam no pátio da escola Fernando Prestes. “Eu não dominava a linguagem dos sinais. A Maria José sabia a leitura labial, então ‘conversávamos’ através de desenhos. Eu desenhava nossas cenas, sempre a representando de saia e eu de óculos. Foi maravilhoso”, relembra emocionada. Infelizmente todos os cadernos de desenho se perderam devido a um forte temporal.
Os ensaios começaram em outubro de 1982. O elenco assistiu várias vezes ao longa-metragem de Arthur Penn baseado na peça. “Muitas cenas ficaram parecidas com a do filme. Minuciosa na composição das cenas, ela gostava das coisas bem executadas. Didática em suas explicações, Margha gostava de esclarecer o porquê de suas escolhas. Quando inseria uma música na montagem, por exemplo, ela nos explicava detalhadamente a composição”, conta Márcia.
Márcia conta que a cena mais difícil do processo foi a “cena do poço”, quando a professora consegue que Helen pronuncie a sua primeira palavra: “água”. “A Margha me pediu para compor essa cena com forte impacto emocional. No decorrer do processo ela foi me sensibilizando. O resultado foi impactante e a cada apresentação tornou-se mais emocionante”, explica.
Anos depois, Márcia reviveu essa cena ao lado de Maria José durante as comemorações dos 20 anos da montagem. “Obviamente, depois de tantos anos, estávamos transformadas, mas, quando nos encontramos no ensaio, a nossa memória afetiva transbordou e foi tão bom quanto da primeira vez”, emociona-se.
O evento comemorativo, ocorrido em 2004, expôs registros fotográficos da montagem e homenagem aos integrantes da peça em uma sessão solene na Câmara Municipal. Na paróquia Nossa Senhora das Estrelas, alguns atores da montagem reviveram suas performances em cenas escolhidas pela direção.
Uma Trajetória Única – Nascida em Capão Bonito, Margha era filha de Elisa Lucas e do maestro Pedro Bloes. Na adolescência, mudou-se com a família para Itapetininga. Cursou o magistério na escola Peixoto Gomide e, posteriormente, licenciou-se em Português, Francês, Sociologia e Psicologia, lecionando em diversas cidades.
A advogada Ana Elisa Bloes Meirelles de Arruda e Miranda explica que a paixão de sua tia pelo teatro surgiu como recurso pedagógico quando lecionava. “No início de sua carreira, sempre lhe atribuíram as classes que os efetivos mais antigos não queriam devido às dificuldades de aprendizagem dos estudantes. Através da arte, principalmente do teatro, ela despertava nesses alunos a paixão pela vida, pelo saber”, comenta.
Em Itapetininga, quando lecionava na escola Adherbal de Paula Ferreira, encenou com os alunos a comédia escrita por Carlo Goldoni, “Arlequim, Servidor de Dois Amos”. O trabalho foi apresentado no mês de dezembro de 1981 no salão do prédio da Previdência Social.
Em setembro de 1982, Margha fundou a Associação Cultural Théspis (Theatrum Specta Itapetininga Scholarum). O nome da companhia amadora foi uma sugestão do seu irmão, o cônego João Bloes Netto, talentoso músico, regente de corais e escritor. Dezoito anos depois, a Câmara Municipal declarou o grupo como Utilidade Pública de Itapetininga.
“O Milagre de Anne Sullivan” foi encenado pelo Théspis na Igreja Nossa Senhora das Estrelas, pois, “na época, o espaço possuía a melhor acústica da cidade”, explica Ana Elisa. A encenação teve repercussão nacional. No ano seguinte, a Câmara Municipal conferiu a medalha de mérito, comenda privativa de Cidadão Benemérito, à Associação Théspis.
O trabalho seguinte do grupo foi “Introitus – a Semiópera”, escrita por Margha em parceria com Flávio Renato Bloes Bartolomeu. A peça narrava acontecimentos que envolviam a queda do último Doge de Veneza no século 18. Em virtude da complexa produção idealizada, a montagem levou oito anos para ser finalizada. “Introitus” estreou em setembro de 1995 no anfiteatro do Paço Municipal. Posteriormente se apresentou no Municipal de Sorocaba e, em São Paulo, exibiu algumas cenas no Banana-Banana.
Em março de 1998, Margha dirigiu um espetáculo infantil, “Uma Visita ao Reino de Abduz Amir”, encenada no Teatro ao Ar Livre do Buana Parque de Guareí.
Seu último trabalho foi realizado na Catedral Nossa Senhora dos Prazeres. A peça “Simplesmente Francisco” teve dramaturgia de Margha e Maria Inês Vasques Ayres Bernardes. A montagem estreou em 29 de novembro de 2017 e realizou cinco apresentações.
Devido aos problemas de saúde da encenadora, não foi possível uma nova temporada. Ela faleceu no ano seguinte, em São Paulo, no dia 21 de dezembro, aos 76 anos, dias após ser operada do coração. O majestoso voo do seu trabalho lembra uma frase de Helen Keller: “Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar!”.
Nesta semana em que se comemora o Dia Mundial do Teatro, celebrar a inesquecível montagem de 1984 nos faz refletir que, apesar de um espetáculo teatral desaparecer imediatamente quando as cortinas se fecham, seu potencial artístico para sempre será lembrado em decorrência de seu poderoso significado.