“A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras:

É pouco comum o sujeito, envolvido pela casualidade ou pela celeridade do cotidiano, examinar a profundidade de sua vida interior. Normalmente a experiência prática submete-o a automatismos e a superficialidades que insensibilizam a relação dele consigo e com o exterior. A ordem das coisas no mundo, inalterada pela rotina, pela ausência do novo ou até por um certo desbotamento do olhar, pode provocar, em alguma medida, a irreflexão e o comodismo. A protagonista de “A Paixão Segundo G.H.”, romance de Clarice Lispector de 1964, acusa o incômodo que a iminente mudança produz: “tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo”, visto que “é difícil me entregar à desorientação”.
O impacto da transformação, ou ao menos a sua possibilidade, é justamente o mote dessa obra de Clarice Lispector, cuja ficção, nas palavras de Massaud Moisés, “flui no hiato em que o drama existencial se delineia”. Num dado momento da intriga, a desestabilização que assalta G.H., produto de um acontecimento comezinho, é entendida por ela como a perda da humanidade e do próprio mundo, o qual precisará mudar para acomodá-la ou para engastar um “novo modo de ser” que a habita depois de vivida a experiência de uma sucessão de visões fragmentárias.
Nesse livro, sustentado do início ao fim como monólogo, a narradora personagem, identificada apenas pelas iniciais G.H., começa o enredo intranquila e atormentada pelo que viu na véspera. A princípio não distingue se o fato efetivamente aconteceu da forma como a memória lhe evoca, afinal “a verdade não me faz sentido”, mas, enfim conformada com a tragédia presenciada, tenta imaginar de que maneira dará forma ao caos. A individualidade posta à prova testará os seus limites e a levará a um itinerário psíquico a partir do qual se dará a “exteriorização do oculto”, segundo expressão de Massaud Moisés. Nesse processo, evidencia-se uma característica da prosa de Clarice a que o crítico Álvaro Lins se refere como “a colocação do espaço e do tempo no plano da descontinuidade”, visto que prevalece na história, sem cronologia exata, as intermitências do “eu” e seus efusivos anseios e pensamentos diante de uma trama relativamente enxuta e tênue.
G.H. é uma mulher realizada e financeiramente independente que mora em uma cobertura decorada de forma artística. Pelo apartamento, viam-se retratos dela própria, em cujo semblante “sorridente” e “mal-assombrado” havia um “silêncio inexpressivo”. Ela recentemente despedira a empregada e, como gostava de arrumação, resolveu começar a limpeza da casa pelo quarto que pertenceu à ex-funcionária. Além da surpreendente organização do cômodo, deparou-se ali com outro elemento que lhe chamou a atenção: feito a carvão “na parede caiada”, um mural do contorno de “um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão”, produzido por Janair, a empregada, que poderia ter investido no desenho uma representação do ódio que sentia contra a patroa.
Como o quarto era o oposto de tudo o que G.H. criara no apartamento, o “oposto da beleza” resultante de seu talento para arrumar e, atualmente, “o retrato de um estômago vazio”, fisicamente ele a exasperava e não poderia mais carregar em si rastros de Janair. Por esse motivo, era fundamental fazê-lo voltar a ser parte da harmonia da casa, ainda que limpá-lo significasse, se necessário, jogar rios de água no raspado da parede e nos móveis. Porém, ao abrir a porta estreita do guarda-roupa, ela vê, de encontro ao seu rosto, algo insólito: uma “barata grossa”, tão “velha que era imemorial”, a mover-se lentamente até o espaço da abertura.
Dominada pelo medo e pelo ódio e presa entre a cama e o armário, G.H. golpeia o inseto com a mesma porta entreaberta e, extasiada, percebe-se contemplando a vítima que acometeu e que lentamente agonizava. De acordo com Benedito Nunes, “sob o fascínio da barata que a repugna e atrai”, inicia-se um “êxtase selvagem” que absorve G.H. para a “continuidade alucinatória de uma vida envolvente” em que “vê sendo vista”. Ela própria diz que o seu impulso agressivo a permitiria tomar consciência de si de tal modo que a visão daquele bicho a levava a descobrir não só uma identidade “mais profunda”, mas também uma abertura à “larga vida do silêncio”.
Toda a narrativa exprime um fluxo de consciência alicerçado nesse fato primacial e, por assim dizer, banal, através do qual a personagem é arrebatada das suas casualidades e mundanidades para experimentar o segredo, o novo, o até então indizível. A barata, conforme pontua Nunes, “transtornou a existência arrumada de G.H.”, fez que ela perdesse os padrões e as referências a fim de viabilizar uma “metamorfose interior e espiritual” de si representada pela entrada no quarto e pela ruptura com o sistema de “hábitos humanos”. Embora considerasse que “há um mau gosto na desordem de viver”, a narradora não se furtou à sedução de confrontar o inseto e, por meio dele, também confrontar uma nova dimensão do ser a favor de outro, o “não ser”, contraditório, atemporal, irracional, avesso à moral e transcendente ao imanente, percebido no mergulho introspectivo que a vivência do bicho proporcionava.
Nessa nova condição, G.H. mira o consciente para aliviar a sua incômoda descoberta existencial, mas acaba atingindo o inconsciente, o lugar da indiferença “quieta e alerta”, do “indiferente amor”, de um “indiferente sono acordado”, de uma religiosidade às avessas que não prevê a intimidade com o divino, mas postula o abandono à tentação “de ver, de saber e de sentir”, porquanto o centro de gravidade do romance não é a busca pela individualidade ou a sua restauração, mas a fragmentação e a perdição da alma. Nessa esteira, à procura da “grandeza de Deus”, ela encontra a “grandeza do inferno”, expulsa que fora do aconchego porque despertou a curiosidade.
“A Paixão Segundo G.H.”, em seu aspecto confessional, é perpassada por um misticismo reforçado pelas constantes referências religiosas: o “descanso na sétima hora”, o “meu reino que é deste mundo”, o “não ser frio nem quente, mas morno”, o quarto “minarete”, a oposição entre “paraíso e inferno”, a “travessia do deserto” ou a “condição humana” ser “a paixão de Cristo”, por exemplo. Nesse contexto, até a própria personificação de Deus, cujo nome é, na maior parte das vezes, antecedido de artigo definido (“o Deus tem força”, “o Deus não promete”, etc.), é índice de distanciamento ou, nas palavras de Luis Costa Lima, de “recusa de encará-lo como um refúgio situado mais além”, um modo de “incorporar o religioso à dimensão humana da práxis, do agir terreno”.
Olga de Sá destaca que “o movimento da escritura autodilacerada de Clarice Lispector transparece no drama da linguagem”, cuja construção torna acessível a experiência narrada. Segundo Heidegger, “a linguagem fala”, ela “convoca as coisas” a serem visíveis e revela-as existentes no tecido do real. Somente por meio dessa mediação reveladora é que a interioridade de G.H. se mostra autêntico “ser-no-mundo” e que, por mais que transborde da consciência, faz concretos e alcançáveis os sentimentos e as ideias que compartilha. Além disso, essa interioridade permite que a visada de rosto entre a mulher e a barata adquira a densidade existencial que choca, enoja, sensibiliza, atrai ou repudia o leitor: “a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio”.
No fim, G.H. despersonaliza-se diante da “massa branca” visceral do inseto, mas, numa de suas últimas reflexões, diz que “a realidade é a matéria-prima, e a linguagem é o modo como vou buscá-la”. Isso traduz o estilo literário de Clarice Lispector: uma voz feminina potente, inimitável e insubstituível que sonda, “nos interstícios da matéria primordial”, a “linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo”.

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