“Frankenstein ou O Prometeu moderno”, de Mary Shelley

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras:

No verão de 1816, um grupo de amigos, dos quais fazia parte Mary Shelley (1797-1851), seu amante e futuro marido Percy Bysshe Shelley, e Lord Byron, um dos mais influentes poetas do Romantismo, reuniu-se na Villa Diodati, na Suíça, para uma temporada de descanso. A certa altura, confinados em casa por causa da constante chuva, esses amigos, influenciados por contos de terror gótico que passaram a ler, como “History of the Inconstant Lover”, da coletânea “Fantasmagoriana”, receberam de Byron um desafio: cada qual deveria escrever uma história de fantasmas. Nesse contexto, começou a ser idealizada na mente da jovem Mary Shelley uma das mais célebres, marcantes e duradouras obras de terror, “Frankenstein”, nas palavras de Northrop Frye, “a precursora dos suspenses existenciais”.
Para o imaginário popular, a criatura de Victor Frankenstein resume-se a uma figura aterrorizante, um monstro desprovido de pensamento e de emoções, avesso à espécie humana. Para além dessa impressão, muitas vezes alimentada pelas inúmeras adaptações a que o personagem foi submetido ao longo de mais de dois séculos, o livro, publicado em 1818, é uma sucessão de episódios surpreendentes envolvendo o criador e a sua criação. É, conforme pontua Maurice Hindle, “um livro enigmático em muitos níveis”, já que levanta reflexões sobre “as forças desconhecidas” que sustentam a vida, sobre os possíveis meios de manipulá-las e sobre as consequências da busca incessante do conhecimento que redunda num poder criacionista. Ademais, a própria Mary Shelley releva, na “Introdução da autora” para a edição da série Standard Novels de 1831, que era preciso uma história capaz “de falar dos misteriosos temores de nossa natureza”, de “despertar um horror arrepiante” e de fazer “o leitor ter medo de olhar à sua volta”.
Toda a trama é apresentada de forma epistolar. O capitão Robert Walton, um homem ambicioso com “amor pelo maravilhoso”, que havia deixado a Inglaterra para explorar os limites do polo Norte, escreve à irmã Margaret para relatar-lhe a chegada a São Petersburgo, os preparativos para a expedição e as experiências dela decorrentes. Já a bordo do navio nas águas do Ártico, conta como os marinheiros à noite avistaram a aparição de um homem cujos traços não puderam distinguir. Ao amanhecer, um segundo homem, ferido e à deriva num grande bloco de gelo, é resgatado pela tripulação. Trata-se do cientista Victor Frankenstein.
Impressionado com a expressão impetuosa do seu hóspede, embora o notasse “melancólico e atormentado” na maior parte do tempo, Walton conquistou-lhe a confiança e conseguiu que Victor começasse a contar a própria história. Com isso, pôde explicar o motivo por que estava lançado às águas gélidas: “para procurar alguém que fugiu de mim”, ele disse. As revelações posteriores acabaram por trazer à tona “hábitos sobrenaturais” associados ao destino “irrevogavelmente determinado” daquele pobre desconhecido. Para Anne K. Mellor, essa estrutura narrativa que sobrepõe vozes em uma “série de telas concêntricas” desacelera o enredo e propicia tempo de meditação à medida que os diferentes pontos de vista se expressam, da primeira carta do capitão ao depoimento da própria criatura.
Desde jovem, Victor Frankenstein já manifestava, como autodidata, interesse pela investigação dos segredos do mundo físico e da “substância exterior das coisas”. Aos dezessete anos, após a morte da mãe, foi para a universidade de Ingolstadt ampliar os seus campos de conhecimento. Ali montou o seu laboratório e passou a aperfeiçoar instrumentos que lhe permitiram o estudo da estrutura do corpo humano, da fisiologia e da anatomia, pois, como destaca Ruy Castro, “revoltava-o a corrupção da matéria inanimada” e o fato de o verme tornar-se herdeiro das maravilhas orgânicas dos entes vivos. Enfim, desejava ardentemente superar a deterioração da carne, em outras palavras, a morte.
Depois de esforços fracassados e de um empreendimento que contou com coleta de ossos, visitas secretas a casas mortuárias e profanação de sepulturas, confessou ter descoberto a “causa da geração da vida”, assim a tarefa de criação de um ser humano, embora “repulsiva em si mesma”, lograria êxito em “uma noite lúgubre de novembro”: a criatura despertava com os seus opacos olhos amarelos e a movimentação convulsiva dos membros.
No entanto, o doutor não suportou a aparência daquilo que criara e considerou uma catástrofe a realização de seu empenho, algo que nem mesmo Dante conceberia: como temia o infeliz ser monstruoso e por ele nutria desmedido horror, rejeitou-o e abandonou-o à própria sorte. Por esse motivo, Harold Bloom analisa que a tragédia de Frankenstein não vem do excesso daquilo que realiza, mas de seu “engano moral” e da sua “incapacidade de amar”. Isso quer dizer que ele representa o avesso do Prometeu mitológico descrito por Hesíodo na tradicional “Teogonia”, visto que, portador do segredo “divino” que traria “esperança” e “gratidão” aos homens, resolve execrá-los e escapar à responsabilidade. Bloom chega a ver um “involuntário humor” nessa oposição entre a grandeza da descoberta de Victor e a atitude mundana de suas emoções.
Produto da violação das leis naturais e de uma “obsessão fatal”, a criatura, após o incidente de seu nascimento, vaga à procura da autopercepção e da própria identidade, cujas marcas advêm de epítetos aviltantes formulados por seu criador: ela é o “monstro miserável”, o “demônio”, o “inseto vil”, o “inimigo”, o “temido espectro”, o “monumento vivo à presunção”. Mas, como lembra Martin Tropp, a história do desprezado e inominável monstro é o centro do romance, portanto não pode deixar de ser contada. Vítima do ódio e do repúdio das pessoas, ele mostra que deseja ser não só compreendido, mas também aceito.
Sem o condicionamento dos costumes sociais e abandonado no mundo, o abominável ser necessitou aprender tudo o que diz respeito à vida humana, da linguagem aos valores e sentimentos. E ele o fez de modo íntegro e eficiente enquanto se escondia no chalé da família De Lacey. Ali, observando bons hábitos e lendo livros, convenceu-se de que a bondade e o virtuosismo são o caminho certo; entendeu que se tornar valoroso era “a mais alta distinção” que alguém sensível deveria alcançar; fez-se, segundo Tropp, “articulado, inteligente e sensível”, apto a defender “eloquentemente o seu direito de existir”.
Infelizmente, a corrupção proveniente dos “desmandos da sociedade”, em expressão de Maurice Hindle, fez esses valores desmoronarem e levou o novo vivente a mostrar a sua face mais sanguinária. A exclusão e o descaso geraram retaliações, e a infelicidade fruto do abandono pavimentou a maldade e a vingança. Então, após consumar assassinatos e perseguir e confrontar seu criador com a confissão da culpa, ele admite que somente uma companheira da mesma espécie abrandaria a fúria que lhe acometeu. “Sou mau porque sou infeliz”, reconhece, logo somente uma mulher com aspecto repugnante igual permitiria a solidariedade à sua existência.
Harold Bloom afirma que “o maior paradoxo e a mais surpreendente realização do romance de Mary Shelley é que o monstro é mais humano que o seu criador”. No seu apelo em defesa de uma companhia, a criatura argumenta que a benevolência se consolida na reciprocidade e que a análise racional é um importante suporte para a compreensão das emoções. Sendo assim, e seguindo a indicação de Richard Church e Muriel Spark, pode-se ver ambos os personagens como as metades antitéticas de um mesmo ser num cenário em que a virtude e a perversidade ocupam espaços com limites muito tênues.

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