Geralmente ia-se para a escola com um pé calçado e outro descalço e com o dedão amarrado num pano, para fingir que estava machucado. Os professores já nem ligavam mais e o fato era tido como natural, sendo somente aceito. É que todos sabiam que criança, remediadamente pobre, divide o par de sapatos com algum irmão.
De sorte que ali, no Grupo Escolar Major Fonseca, quase todo mundo andava sempre com um pé de fora. Só o Paulinho é que exibia pares de sapatos coloridos. Muitos viviam em tanta dificuldade que não podiam sequer trocar o pano do pé descalço. O Paulinho não, se pudesse ia até com o sapato nas mãos. Que inveja tínhamos do Paulinho – filho do Sr Paulo Zagotes, funcionário de uma grande firma local. Foi o primeiro a aparecer na escola com as marcas da vacina contra a varíola, naquele tempo não existia o SUS. E se a vacina pegava, lá vinha ele todo orgulhoso mostrando o “feridão” no braço. Houve um dia, então, que o Paulinho chegou com o braço quebrado num acidente com o automóvel do pai, todo mundo quis ver, “deixa ver.”,” deixa eu dar uma voltinha no gesso”. E que inveja do braço quebrado do Paulinho, que lá exibia a tipoia e o aparador de gesso como um heroísmo sadio, fazendo a gente miúda, sentir-se menor ainda.
Até que no quarto ano, apareceu um professor, Seu Edil, cunhado de um conhecido comerciante local e aliviou a todos, porque parecia ser tão pobre quanto nós. Vestia um terno que já se arrependia de ter, um dia, sido celestialmente azul.
Poucos gostavam dele por ser imponente. Mas um dia acabou sendo ele o nosso orgulho e a nossa consolação. É que o Rocha, um garoto bem esperto, descobriu porque o professor Edil nunca dera as costas aos alunos, mesmo quando escrevia na lousa. Ficava de lado, ocultando a parte traseira do corpo. O Rocha, sorrateiramente, se esgueirou entre as carteiras e foi espiar o local estratégico.
No recreio, veio a nossa grande revelação: – Sabe? Ele tem as calças rasgadas. E, então, nem uma risada e com uma tonalidade de melancolia nos olhos, cada um de nós olhou para os próprios pés: um calçado e um descalço. Nós ainda podíamos amarrar o dedão …. E o professor Edil que não podia amenizar a depreciação do seu velho e surrado terno. Nos identificamos com ele, virou nosso ídolo e nosso lenitivo.
PS: Essa história se passou no antigo prédio do Major Fonseca, quando o diretor da escola era o Sr Eurico de Moura, irmão do jogador de futebol Jacinto de Moura, há muito, muito tempo ….