“O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes

Por: Daniel Paulo de Souza

Dias Gomes (1922-1999) é certamente um dos maiores escritores da dramaturgia brasileira, com uma obra profícua que representa preciosa contribuição para o teatro, a televisão e a literatura nacional. No empenho de retratar os tipos e caracteres do nosso país, ele apostou na crítica político-social e na expressão das falhas morais humanas como meio de manifestar insatisfação com a realidade e de erguer um coro a favor da dignidade e da liberdade. Nas palavras de Anatol Rosenfeld, Dias Gomes faz parte do grupo dos “rebeldes sadios”, daqueles que “fazem de sua obra focos de perturbação”, com especial atenção ao brasileiro simples, “inserido em seus costumes”, autêntico e, por esse motivo, inclinado a despertar no público a identificação imediata. Com isso, ainda segundo Rosenfeld, ele cumpre a tarefa do dramaturgo, a de proporcionar espetáculos perturbadores que revolvem “as águas paradas do habitual conformismo satisfeito”.
Autor de peças clássicas como “Zeca Diabo”, “A Revolução dos Beatos”, “Odorico, o Bem-Amado”, “Santo Inquérito”, “O Rei de Ramos” e outras, além de roteiros televisivos icônicos como “Roque Santeiro”, “Saramandaia” e “Mandala”, sem dúvida sua obra mais aclamada e premiada é o espetáculo “O Pagador de Promessas”, escrito em 1959.
Nessa peça teatral, acompanhamos a história de Zé-do-Burro, um sertanejo simples que, ao lado de sua esposa Rosa, anda sete léguas da roça à cidade para pagar uma promessa a Santa Bárbara (ou Iansan, na tradição do candomblé) em retribuição a uma graça alcançada. Na porta da igreja em que levou uma cruz “tão pesada como a de Cristo”, ele encontra a intransigência do vigário que não o permite entrar com o objeto representativo da gratidão à santa. Daí decorre uma série de desentendimentos e a atuação de diferentes pessoas interessadas nessa desventura de Zé-do-Burro.
Ao longo desse enredo, chamam a atenção alguns aspectos da vida diária, sobretudo pelas consequências trágicas que produzem. É certo que o texto de Dias Gomes tenta mostrar, no geral, os impactos da vida urbana sobre a rural em meados dos anos 40 e 50. A simplicidade do homem do campo não encontra lugar à medida que entra em contato com o ritmo e os comportamentos agora impostos pela urbanização. O choque de valores, nesse sentido, evidencia parte da corrupção moral a que se submete o ser humano na luta pela sobrevivência nas grandes cidades.
Zé-do-Burro não tem grandes pretensões quando decide levar a cruz à santa. Para ele, o cumprimento da promessa é apenas uma obrigação reverente na relação entre o homem e a figura sagrada. Diz ele: “nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crédito”. A seu modo, mantém uma convicção calcada na obediência e na fidelidade, as quais não podem ser demovidas. Contra a insistência de Rosa em desestimulá-lo à porta da igreja, ele reafirma o dever da honestidade: “Andei sete léguas. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro”.
A singela promessa de Zé-do-Burro, que se alegrou com a cura de seu melhor amigo, o burro Nicolau, ganha uma dimensão desproporcional principalmente por causa de fatores ligados à intolerância praticada em níveis distintos e às relações interesseiras acentuada pelo desvio ético da imprensa local. O forte contraste desse cenário é a tônica da crítica nessa obra.
O encontro com o vigário principia o maior embate dessa história, razão de todos os outros conflitos. A intolerância religiosa com que o sacerdote trata o gesto do sertanejo é, na verdade, produto de um entendimento específico do sagrado. Para Zé-do-Burro, a quem Iansan e Santa Bárbara são a mesma pessoa, a verdadeira religiosidade é a expressão sincera do coração, independente do espaço no qual é praticada. Para o vigário, uma promessa como a fez Zé-do-Burro, em um terreiro de candomblé, mesmo que dirigida a uma santa católica, é um pacto firmado com o maligno: “O senhor foi a um ritual fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício!”, ele afirma, completando que “A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do diabo!”. Com isso conclui que não se pode servir a dois senhores.
É evidente que ambos não se dissuadem, não aceitam a contraposição, pois estão certos daquilo que defendem. “Pecam pelo excesso”, disse Rosenfeld. Há de se sublinhar, no entanto, que a raiz desse litígio é uma interpretação enviesada da realidade: o vigário, em sua posição religiosa, fez a leitura da promessa de Zé-do-Burro a partir do dogmatismo católico. Na análise do discurso, diríamos que ele optou pelo subentendido, ou seja, deu ao texto uma compreensão subjetiva conforme a analogia que lhe convinha. Esse processo tem uma justificativa presente até na semiótica de Umberto Eco: trata-se de suspeitar que o significado de um signo seja, na verdade, o signo de um outro significado.
Se para o sertanejo Iansan é Santa Bárbara e o terreiro e a igreja se confundem como espaços para o diálogo franco com os santos, para o vigário esse sincretismo, ainda que ingênuo, é a fonte da queda do homem, é a “insistência na heresia”, segundo ele próprio, motivo pelo qual Zé-do-Burro acreditaria “mais na força do demônio do que na força de Deus”. Aqui a barreira erigida é o da incompatibilidade das crenças, que hoje se traduz na polarização das ideologias discordantes e, como consequência, na perigosa e reprovável inadmissão da diversidade.
Aflora, desse embate interpretativo, outro fator de destaque: sob o véu da promessa e do confronto entre Zé-do-Burro e padre Olavo, aparecem os defensores de causa própria. A começar com Bonitão, que falsamente se mostra preocupado com Rosa para aproveitar-se dela, outros personagens se aproximam e se apoiam na suposta empatia com o sertanejo injustiçado para impulsionar os próprios intentos: Dedé Cospe-Rima só quer aumentar a venda de suas poesias; Galego quer clientela farta; o Guarda e o Secreta querem uma promoção; o Repórter quer prestígio jornalístico com a criação de um factoide. Cada qual não é militante da solidariedade, mas do interesse individualista deliberado.
A crítica às relações aparentes e epidérmicas encontra eco na análise de Sérgio Buarque de Holanda sobre o “homem cordial”, alcunha normalmente atribuída ao brasileiro. Nesse estudo, o autor enfatiza que tal qualidade hipotética é, na verdade, o contrário da polidez: é uma “organização de defesa ante a sociedade”, serve de “peça de resistência”, ou disfarce, para preservar “intatas” a “sensibilidade” e a “emoção” do sujeito. No enredo, por exemplo, a mídia, na figura do Repórter, manifesta a tendência quase natural de projetar simulacros da realidade sob o pretexto da cobertura fidedigna dos fatos. O resultado é a criação de um Zé-do-Burro líder de movimento agrário e novo Messias revolucionário, ativista da “causa do povo” e merecedor de desfile em “carro aberto”, afinal a imprensa pode fazê-lo, em poucas horas, “herói nacional”. Infelizmente, como hoje, o avesso do “glamour” da vida midiática é a tragédia velada e anônima do homem simples.
Em 1962, “O Pagador de Promessas” ganhou uma adaptação no cinema, sob direção de Anselmo Duarte, e foi premiado com a Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes. Até hoje é a única produção cinematográfica brasileira a conseguir o feito, prova da universalidade e da essencialidade do texto de Dias Gomes para a cultura geral. Precisa ser revisitado sempre que possível.

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