“O Quebra-Nozes e o Rei dos Camundongos”, de E.T.A. Hoffmann

Por: Daniel Paulo de Souza

Fabulações transformadoras

A celebração do Natal, desde sempre cercada de abundantes simbologias religiosas e culturais, já muitas vezes inspirou a literatura a produzir obras referenciais de gêneros diversos e de conteúdos instigantes. Nesse sentido, buscar tais histórias, quando essa época se avizinha, não significa mero ato saudosista ou afetivo, mas uma imersão na alma humana e nas ações que dela emanam, afinal, conforme destaca São Tomás de Aquino, o episódio da “encarnação de Deus” é uma oportunidade, por exemplo, para a “promoção do homem ao bem”, a “repressão da soberba” e a “remoção do mal”. Para tanto, qualquer avaliação que o sujeito faça de si e de outrem é melhor viabilizada pela experiência da leitura de um livro, que é, de acordo com Alberto Manguel, “repositório de memória”, “meio de transcender” o tempo e o espaço, “local de reflexão e de criatividade” ou “fonte de iluminação”.
“O Quebra-Nozes e o Rei dos Camundongos” (1816), do alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822), é uma dessas influentes narrativas natalinas em que a fantasia se torna um recurso sui generis para a compreensão e a mudança de certo comportamento humano. O autor, um dos grandes expoentes do Romantismo em seu país e no mundo, escreveu obras de envergadura que marcaram a carreira de grandes escritores, como Dostoiévski e Edgar Allan Poe, além de Alexandre Dumas, que fez a sua própria versão para o “Quebra-Nozes”, e de Pyotr Ilyich Tchaikovsky, que compôs um de seus aclamados balés sob influência da mesma história. Célebre pela mescla de elementos encantadores e sombrios, é considerado um dos pilares da tradição da literatura fantástica.
Por ocasião da véspera de Natal, os irmãos Marie e Fritz Stahlbaum aguardavam ansiosamente o momento da entrega dos presentes. Da saleta dos fundos, impedidos que foram de entrar na sala central e na sala de estar, tentavam expiar o movimento e imaginar as surpresas que os aguardavam, sobretudo as que o Padrinho Drosselmeier trazia. Descrito como um homem “baixinho e mirrado”, “careca” e “cheio de rugas”, ele usava um “tapa-olho negro” no lugar do olho direito, era um habilidoso relojoeiro e fabricava com esmero os brinquedos com os quais presenteava as crianças. As peças que produzia eram trabalhos tão cuidadosos que passavam o resto do ano fechados em um armário para preservá-los de danificação. No fim, esses brinquedos, embora belos, eram pouco aproveitados por ambos.
Marie, a mais nova, projetava um lindo jardim com um lago e “esplêndidos cisnes com colares de ouro”. Já Fritz contava com um castelo cheio de soldados “que marchavam de um lado para o outro”. Na crença dos dois, o Cristo Santo, de olhos “gentis e piedosos”, iluminaria tudo e generosamente lhes proporcionaria “uma alegria maravilhosa”. Para espanto dos pequenos, conduzidos à sala pelos pais, a grande árvore de Natal estava cheia de maçãs douradas, brotos de folhas e de flores, amêndoas confeitadas, bombons coloridos, todo tipo de guloseimas e admiráveis luzes brilhantes. Um espetáculo à parte que ornava com os esperados presentes.
Entre bonecas, utensílios de cozinha, um esquadrão de hussardos em cavalos brancos, um alazão, um vestidinho de seda e livros de figuras, estava a surpresa feita pelo Padrinho Drosselmeier: “um esplêndido castelo” com janelas de vidro espelhado, torres douradas e diversos habitantes ricamente trajados que se moviam pelos espaços. Um desses autômatos era o próprio Padrinho da estatura de um polegar. Apesar da engenhosidade da construção, a repetição de movimentos dos pequeninos bonecos não seduziu muito as crianças.
Nesse ínterim, algo próximo à árvore chamou a atenção de Marie e tornou-se o seu protegido: um homenzinho de aparência estranha e feia, corpulento, pernas franzinas, cabeça desproporcional e vestes de soldado. Ela logo se afeiçoou à figura porque notara nela um “rosto de bondade”, de “amizade” e de “boa vontade”. Era o Quebra-Nozes, cuja missão consistia em servir aos irmãos na difícil tarefa de quebrar as cascas duras das nozes. A senhorita Stahlbaum o fez ganhar lugar especial entre as suas bonecas, principalmente depois de Fritz danificar-lhe alguns dentes e a mandíbula. No armário especial envidraçado ele repousou até que, no meio da noite, motivado pela ameaça do rei camundongo de sete cabeças, surpreendentemente ganhou vida ao lado dos demais brinquedos e rumou com todos para uma batalha impiedosa contra a investida vingativa dos roedores.
O título do livro, como sugere Priscila Mana Vaz, mostra que Hoffmann tencionava realizar “um conto para crianças”, porém a essência da trama, com algumas alusões literárias e descritivos às vezes sinistros, atrai todos os públicos. Envolto em uma atmosfera de contos de fadas, o enredo de “O Quebra-Nozes” reúne, segundo Vaz, “elementos populares” e explora “bem o fantástico”, além de concretizar o que Marie-Louise von Franz define como a essência desse tipo de gênero narrativo: ser a “expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo”.
Nessa linha, cada personagem assume um arquétipo específico e, no dizer de Bruno Bettelheim, vive um “dilema existencial de forma breve e categórica”. Marie incorpora a inocência, a bondade e a tentativa de provar a facticidade do imaginário; o rei camundongo de sete cabeças representa a vilania incontrolável e insaciável herdada dos familiares; Drosselmeier é o sábio incompreendido capaz de guiar os protagonistas rumo à verdade e à realização plena; o Quebra-Nozes faz o papel do herói virtuoso e, ao mesmo tempo, injustiçado à procura do amor capaz de libertá-lo. O narrador, por sua vez, conta os fatos e ocasionalmente dialoga com o pequeno leitor a fim de aproximá-lo da realidade do drama vivido por esses personagens.
Ainda que a obra seja originalmente apresentada em quatorze breves capítulos, esses aspectos anteriormente destacados são basicamente costurados em três partes subsequentes. A primeira, a da noite de Natal, apresenta os irmãos Stahlbaum e faz o Quebra-Nozes entrar em cena, ganhar vida e batalhar contra o seu perseguidor. A segunda, a da história da princesa Pirlipat e da rainha Dona Camundongora, relata a origem da maldição do herói e o motivo pelo qual ele se tornou feio, desengonçado e perseguido pelo rei de sete cabeças. A terceira, após a descoberta da identidade do Quebra-Nozes, culmina com a sua vitória e a visita ao Reino dos Bonecos, cenário de pura fantasia em que a sua realeza é confirmada.
Marie, fielmente atada à magia que havia presenciado naquele reino, com o Portal das Amêndoas e Passas, o córrego das Laranjas, a aldeia do Pão de Mel, Caramelópolis e a capital Confeitoburgo, desejava, nessa última parte, libertar o jovem Drosselmeier de Nuremberg, o sobrinho do Padrinho, e fazê-lo feliz independentemente da aparência que ele carregava como Quebra-Nozes. A pequenina sofre bastante, pois “é impossível uma pessoa se esquecer de coisas tão maravilhosas e bonitas como as que lhe aconteceram”. Ao término de tudo, a fidelidade que carregava no coração é recompensada com a realização dos seus sonhos.
Bruno Bettelheim afirma que esse tipo de conto promove uma moralidade a partir da identificação da criança com as lutas expressas na narrativa. De acordo com o autor, ela “sofre com o herói suas provas e tribulações e triunfa com ele quando a virtude sai vitoriosa”. No caso desse texto de Hoffmann, a maldição e a cobiça nascidas de um precoce e inadequado julgamento das aparências explicam o desenvolvimento da trama e permitem uma reflexão sobre a necessidade de assumirmos uma postura tolerante e de superarmos quaisquer estereótipos calcados na superficialidade das relações.
Quando Marie esteve em Confeitoburgo, a voz do prefeito chamando o confeiteiro fez a multidão calar-se e interromper uma confusão, porque, naquele momento, a força da palavra levou cada um a voltar-se para si e a questionar: “O que é um ser humano e no que um ser humano pode se transformar?”. Essa pergunta enseja a consciência da percepção das próprias limitações e vem justamente ao encontro do que diz Santo Agostinho: “Nosso espírito tem dois pés – um do intelecto e um do afeto, ou da cognição e do amor – e precisamos mover os dois para poder caminhar pela via certa”.

Últimas

Correio Político 1000

Correio Político 1000

  Everthon Juliano Quem surge como uma nova alternativa para a Câmara Municipal é o educador Everton Juliano, pré-candidato a vereador pelo PSOL. Professor de educação infantil, Everthon produz conteúdo...

Apadrinhamento Solidário, um olhar de inclusão

Apadrinhamento Solidário, um olhar de inclusão

Com o objetivo de proporcionar convivência familiar, apoio financeiro e de serviços a crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional e com poucas perspectivas de retorno a família de...

mais lidas

Assine o Jornal e tenha acesso ilimitado

a todo conteúdo e edições do jornal mais querido de Itapetininga

Bem vindo de volta!

Faça login na sua conta abaixo


Criar nova conta!

Preencha os formulários abaixo para se cadastrar

Redefinir senha

Por favor, digite seu nome de usuário ou endereço de e-mail para redefinir sua senha.