Mayara Medeiros Cruz
O ano era 2016 e a necessidade de um atendimento digno e humanitário à população em situação de rua, unida à inquietação de um grupo de profissionais da área da saúde foi o suficiente para que o município aderisse ao programa Consultório na Rua, proposto pelo Governo Federal.
O programa parte de uma parceria entre o governo federal e municípios. O Ministério da Saúde disponibiliza as medicações e o município disponibiliza os servidores municipais da área da saúde. No momento são seis profissionais, uma médica, uma enfermeira, uma técnica em enfermagem, uma terapeuta ocupacional, uma assistente social e um psicólogo. Mas, segundo a enfermeira Rita Carvalho, há a necessidade de um dentista, mas o programa ainda não contempla. “Há muitas doenças bucais graves. Essa é a nossa maior luta no momento”, destacou.
O Consultório na Rua (CNR) atende em nove pontos da cidade, sendo em seis igrejas, católicas e protestantes, e em um Centro Espírita; além de três praças na região central da cidade. O grupo afirma que não há no trabalho prestado espaço para bandeiras políticas-ideológicas, muito menos religiosa. O único objetivo é alcançar o maior número de pessoas que necessitem desse serviço.
Missão: servir
A infectologista Carolina Malavazzi, também conhecida como dra. Calu, trabalhou em programas de atendimento humanitário de referência, como os Médicos Sem Fronteiras (MSF), de 2009 a 2011. “Foi uma das experiências mais incríveis que tive na vida. A equipe formada por vários profissionais, desde médicos estrangeiros até motoristas locais. Todos com muito engajamento e amor para levar assistência médica às pessoas mais vulneráveis, aliviando um pouco o sofrimento delas”.
Já no Brasil, as demandas humanitárias são, em proporção, diferentes, porém tão urgentes quanto as experiências vividas no continente africano. Malavazzi explicou que muito do que aprendeu, anos atrás na missão humanitária, lhe dá base ao serviço prestado nas ruas de Itapetininga.
Após sete anos de programa, a equipe se mantem, praticamente, a mesma e nota-se um vínculo já estabelecido com os pacientes; desses, alguns com estadia fixa na cidade e outros não, também chamados de moradores flutuantes. O CNR atende cerca de 320 pacientes e tem um total de 375 pessoas cadastradas. Dessas, 70% estão em situação de rua, porém esses dados sempre mudam considerando a rotatividade do público-alvo que muitas das vezes vêm de outras cidades ou estados. Segundo Dra. Calu, as doenças mais detectadas entre os pacientes atendidos nas ruas são: diabetes, hipertensão, infecções sexualmente transmissíveis, sífilis, HIV, hepatite, gonorreia. Além de doenças de pele oriundas da excessiva exposição ao sol sem a devida proteção; ou pela falta de higiene como sarnas e piolhos e feridas seriamente inflamadas.
Rita destacou que há um perfil predominante entre esses moradores sendo boa parte deles formada por adultos entre 20 e 60 anos; 80% homens, 15% mulheres e 5% transsexuais. Ainda segundo ela, são pessoas que tinham um ofício como, pedreiros, pintores, marceneiros, trabalhadores rurais e domésticas, mas que com o uso abusivo de álcool e substâncias psicoativas tiveram seus destinos transformados.
Essa brusca transformação, muitas vezes, é geracional, como o caso do jovem Wesley Lucas de Araújo. O rapaz, hoje com 20 anos, mora nas ruas de Itapetininga atrás da liberdade que, segundo ele, nunca teve. “Minha família sempre foi perdida. São presidiários, usuários. Resolvi sair de casa para ter paz, liberdade”. Wesley disse saber cortar cabelo, mas sem as ferramentas do ofício, não consegue trabalhar. Ele faz uso de álcool e maconha, mas afirmou que jamais será como sua família.
As parcerias com as instituições religiosas têm um papel importante para o efetivo desenvolvimento do programa. No dia dessa reportagem, o CNR estava no pátio da simpática Igreja de Santo Antônio, localizada no centro de Itapetininga. Lá, de segunda à sexta, são oferecidos 100 cafés da manhã e cerca de 100 marmitas no horário do almoço. Ou seja, há uma força tarefa que ultrapassa as limitações do Estado em ofertar dignidade à população em situação de rua, tão presente no estado de São Paulo.
Equidade é diferente de igualdade
No início da implantação do programa, a infectologista de plantão disponibilizava o receituário ao paciente para que fosse possível retirar a medicação e fazer o devido acompanhamento em um Posto de Saúde da cidade. Mas, segundo a equipe, por falta de empatia e pelo excesso de burocracia, os servidores de alguns postos não faziam o devido atendimento desses pacientes que não tinham endereço fixo e nem documentação.
Diante da situação que, segundo a equipe do CNR, soava como preconceituosa, eles decidiram levar mochilas com todo equipamento necessário para efetuar os testes rápidos para DSTs, realizar curativos e disponibilizar medicações e pomadas. “Porque entendemos que igualdade é diferente de equidade e precisamos trabalhar com a realidade dos nossos pacientes nas ruas”, explicou dra. Carolina.
A programação do CNR ainda contempla o tratamento e prevenção da desnutrição e campanhas intensas de vacinação, bem como o controle de doenças mais comuns à população nas ruas. A exemplo disso, a equipe encabeçou a “Virada de Ivermectina”, por exemplo, que se tornou uma força tarefa para o controle de infestações de parasitas.
A cara da rua
Ao contrário do que muitos pensam, a rua tem cara, cheiro, cor, gênero e história. Em menos de cinco minutos em que o portão da igreja foi aberto, dezenas de pessoas enfileiraram-se ali. Via-se, inclusive, famílias inteiras aguardando para fazer uma – ou a única – refeição no dia, além de aproveitar a oportunidade em ter a disposição os mais variados profissionais da saúde e com um detalhe que faz toda a diferença: profissionais que escolheram estar ali!
Homens idosos predominavam. Os cabelo brancos, olhar cansado e roupa por lavar. Essa é a rua que mal se nota, que muitos cidadãos passam e não percebem, mas que não é invisível, pois está lá, todos os dias da semana.
Um exemplo notável dessa realidade é o casal Débora de Souza e Marcos Cândido. Ela com 41 anos, ele com 39. Ambos usuários de álcool e crack. No momento moram em um bairro distante do centro da cidade, na Vila Piedade. A irmã de Débora cedeu uma casa de dois cômodos, no fundo de seu quintal, mas, segundo Débora, eles não têm geladeira, fogão, cama, água ou energia elétrica. “Ou seja, é como se a gente morasse na rua. Passamos fome, frio e sem banho do mesmo jeito”, disse.
“Sabe, eu trabalhava, tinha a minha vida. Com 27 anos eu olhei aquela pedrinha tão pequena que pensei que não seria capaz de ser forte. Pois é, o crack acabou com a minha vida e da minha família”, lembrou. Débora tem uma filha de 20 anos viciada em cocaína; tem dois netos, um menino de três anos e uma bebê de um ano e seis meses, ambos foram tirados da família e estão em lares separados. “O que mais me dói é saber que eles estão separados e enquanto eu e minha filha não melhorarmos, não teremos condições de tê-los novamente”, disse Débora, com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Assim como Débora e Cândido, muitas outras história, ali presentes, tinham sido mudadas pelos movimentos da vida, como a história de Élder Rafael da Silva, 36 anos, usuário de drogas e em situação de rua. Ou a jovem Patrícia Aparecida Carneiro, de 34, há anos vivendo nas ruas e, segundo ela, sem esperanças de voltar para casa.
Dignidade, um direito constitucional
O artigo 1º da Constituição Federal de 1988, diz que a “República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana”. Porém, como bem se sabe, não é bem isso que acontece.
O filósofo e historiador Celso Cristiano falou sobre a importância de tais programas, mas destaca a contrariedade na qual só há necessidade de uma pomada, se existe uma ferida aberta. “Penso que o Consultório na Rua é uma das mais significativas expressões das Políticas Públicas voltadas, exclusivamente, à população de rua do nosso país. Entretanto, se deve considerar o paradoxo revelado, observando na perspectiva da ação social, mas também como algo que emerge de um sintoma”, explicou.
E continuou, “quando observamos as conjunturas históricas e sociopolíticas do país fica evidente que as estruturas sociais vigentes estabelecem e reservam lugares para determinadas populações. Sendo assim, tal programa se torna um atendimento paliativo para uma ferida social que nunca para de sangrar”, concluiu.
Ações do município
Em nota fornecida pela Comunicação da prefeitura de Itapetininga, o atendimento ao público em questão é realizado de maneira inter-setorial, através do CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social; PAEFI – Sistema de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos; parceria com o SOS – Serviços de Obras Sociais; Blitz – Serviço Especializado em Abordagem Social que consiste em uma aproximação através do diálogo e a tentativa de convencimento sobre os serviços oferecidos. Há também o Programa Assistir – assistência, trabalho e inclusão social na rua e os abrigos temporários, que permanecem abertos apenas no período de baixas temperaturas.